política

O volume morto do primeiro debate eleitoral

Assim como Assis não seria o mesmo sem Washington e Zico não seria o mesmo sem Júnior em campo, o debate da band mostrou o óbvio: faltou à esquerda neste ano o contrapeso e contraponto nos debates. O que parece ter transparecido: independente do que apareceu, as forças a direita já venceram esta eleição.

A esquerda se enterrou em um projeto único, embora tenhamos candidatos que se puseram na disputa, estes não passarão de 1%, pois a concentração está no projeto de poder do PT. Um projeto cuja contradição habita no fato de que: materialmente é a continuidade do sistema neo-liberal, cuja representação do acordo está no vice: Geraldo Alckimin, porém simbolicamente tem que se apresentar com a tinta de esquerda.

O debate mostrou a fragilidade da unidade personalista, enquanto a direita mostra seus mil tons e dá a oportunidade de seus eleitores escolherem o melhor gestor do pacote, a esquerda perdeu inclusive a possibilidade de dialogar sobre os temas mais delicados às pautas. Não tivemos um candidato falando de reformas estruturantes, de fim de teto de gastos, de recuperação dos direitos trabalhistas perdidos. Lula fala de dar MEI para entregadores quando deveria falar de dar emprego que os tire da precaridade.

Ciro, apresenta de forma muito tímida seu projeto de nação, fala em escolas sem falar no projeto de educação verdadeiramente emancipador, porém remete sempre ao povo que leia o seu projeto (o que sabemos que não acontecerá rs). Tebet tenta se posicionar como uma novidade, embora venha carregada pelo MDB, esta máquina de fisiologismo. Soraia e Dávilla parecem perdidos. Ainda assim, estes nomes: dávilla, tebet, soraia, pautaram e deram o tom do debate ao amplificar muitas vertentes de uma lógica liberal contemporânea de pensamento.

Ciro tentou debater o modelo de nação que temos, questionando o sistema político do Brasil que basicamente conforma o terreno para a corrupção como ferramenta de governabilidade. Cita o desenvolvimentismo, mas não explica bem o que significa e que diferenças tem do modelo atual e se foca muito na pauta de resolver a vida dos endividados, o que é super possível de fazer, porém é uma ação pontual dentro da proposta ampla de governo que nós esperamos conhecer.

Lula estrategicamente se focou em falar das benesses de seu governo, porém tropeçou quanto ao questionamento sobre o que será um Lula 2023? Ao invés de apresentar a proposta de saída retoma o básico: eu fiz isso eu fiz aquilo. Para o povo em geral, em especial quem acompanha debate, isso pouco significa pois todos sabemos que 2023 não é 2003, tem uma geração inteira na vida adulta que sequer viu FHC ser presidente.

A ausência de outras vozes de esquerda foi notória demais para o próprio campo que agora está se questionando. Este é o projeto, a escolha equivocada de movimentos e partidos de esquerda que decidiram por se apequenar nesta eleição e que agora reclamam inclusive do crescimento do neoestalinismo, que se apresenta como alternativa crítica pelo viés da esquerda. Claro que foi tático da emissora não convidar Leonardo Péricles (UP), Vera Lúcia (PSTU) e Sofia Manzano (PCB), sabemos que é de praxe. Isso levou o debate a transparecer, para o povão, como sendo: o Partido Novo ocupando o lugar que até então era do PSOL, levando assim a discussão para o espectro mais liberalizante possível.

O debate mostrou o interesse de três projetos de Brasil: um projeto neo-liberal que mantém o sistema pelo viés financeiro com base no agronegócio e outras comodities, isso é muito representado pelo Lula/Alckimin, Bolsonaro, e talvez Tebet, um sistema neo-desenvolvimentista que Ciro trouxe mas não explicou bem e um sistema utópico super liberal trazido por Soraia e Dávilla.

Ainda em tempo, curioso notar como o projeto de Dávilla e Soraia é antiquado, nem os capitalistas defendem isso a vera pois já sabem que é muito mais interessante ter o aporte robusto do Estado a seu favor e gerenciar apenas os lucros do negócio. Essa é uma das premissas de existência das parcerias PPP e é justamente para isso que o agro faz bancada e lava dinheiro com eventos de entretenimento.

Vangloriar o agronegócio como força motriz do Brasil é um equívoco, pois ele só está neste patamar porque somos um país sem desenvolvimento industrial nacional desde que o Plano Real foi aplicado. O povo passa fome enquanto produz alimento industrializado por aí. A gente (quem pode pagar) bebe soro químico embalado como leite a preços exorbitantes e entramos num ciclo vicioso que só está trazendo mais desemprego e fome.

O que vivenciamos foi um debate muito despolitizado, cujos temas mais necessários ao povo não foram sequer tocados, um show de horrores de pessoas que estão distanciadas demais do povo mais pobre. O Brasil seguirá na incógnita e isso nos obriga a trabalhar mais firme em pró de saídas que não estão tão dadas assim.

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Arquitetura e Urbanismo, política

Condominialização da vida

Uma das grandes contradições das relações entre espaço e sociedade se dá na busca do condomínio fechado. Nós urbanistas estudamos e entendemos os riscos e problemas que este modelo traz nas cidades, porém sempre fica a questão: Por que estes modelos seguem vingando?

Neste momento vamos pensar sobre alguns pontos: segurança, igualdade e qualidade de vida.

O que a maioria dos condomínios vende é uma vida com lazer “urbano” controlado, destinado a um determinado grupamento de moradores selecionados pela capacidade de compra destes imóveis. A vida vendida nas propagandas garante isso, a segurança e conforto é produto da capacidade de gestão de iguais sob um mesmo território murado. A vida fora dos muros é o risco, o medo do outro, do diferente, do imigrante.

O que o condomínio fechado nos mostra com isso é que a relação de qualidade de vida que nos sistemas do capital neoliberal é destinada a alguns poucos têm preço. Para seguirmos em frente vamos observar um pouco o que o modelo neoliberal nos traz:

O modelo se sustenta por um pequeno grupo de mega ricos cuja flexibilidade e poder econômico os permite escapar das muitas relações nacionais de controle social e econômico, temos um grupamento razoável de trabalhadores que se inserem numa lógica de classe média: a quem é destinada a alegria a partir de pequenos consumos, e a quem incide boa parte das tributações que pagam o estado. Por fim, temos uma massa de pobres, cujo poder de consumo é mínimo ou zero, cujo controle se dá pela manutenção do mínimo do mínimo para a sobrevivência destes. Resumindo, o sistema constrói um Estado realmente desigual e incapaz de resolver seus problemas.

É jogado a sociedade a resolução dos problemas por si mesmo, cada um que se resolva. O sistema se torna capaz de flexibilizar suas soluções justamente porque ele aliena a lógica de oferta e demanda devem caminhar juntas na solução de problemas vitais. Não precisamos construir habitação para toda a população, vamos construir X habitações e cada pessoa com seu recurso que tente adquirir sua moradia.  

Quaisquer modelos de governança que visem políticas sociais, seja a social-democracia seja o próprio comunismo é logo traçado como ofensa ao direito individual do cidadão enfrentar por si só o seu caminho.

Agora voltando a contradição: o modelo de condominialização vinga porque ele promove exatamente alguns dos conceitos da justiça social ou do comunismo. Em um microcosmo ele produz espaços de qualidade de vida a um grupamento de cidadãos com igualdade de renda, identidade, conceito de vida. Garante-se o controle de invasores ao ecossistema e por sua vez a segurança.

O que o condomínio nos ensina de interessante é que a segurança está muito relacionada com a capacidade de uma vida igualitária, esta é a busca daqueles que se encantam com a proposta da vida condominial.  Ironicamente um dos desejos de conforto humano se consolida naquilo que o pensamento da esquerda propõe, da Deleuziana até o mais ortodoxo dos modelos, a igualdade.

O condomínio se transforma nesta válvula de escape social, a busca de uma vida comum que de comunitária não tem nada. Se torna um espaço estéril, onde a igualdade entre os que coabitam é construída pelas ferramentas de controle dos grandes investidores (que modelam o negócio).

Assim, o condomínio e a condominialização da vida tentam trazer uma falsa solução aos problemas que ninguém parece ter interesse de resolver, como por exemplo, recuperar as relações de vida comum e vida pública da sociedade garantindo o direito de igualdade de tratamento a todos os cidadãos.

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brasil, política

A graça não cobra nada

Em 2022, o ano em que celebramos os 30 anos da Eco 92 precisamos de mais avanços nas construções. A real é que, a pandemia que ainda nos assola colocou na cara do gol as limitações da organização do capital: a incapacidade de colocar a vida na centralidade das políticas.

Estima-se que a falta de políticas sérias por parte de diversos formuladores mundo a fora pode ter afetado os principais índices de levantamento. Atualmente já se pondera que o número total de vítimas mundo a fora seja três vezes maior do que o declarado, muito devido a subnotificação e falta de testes.

No Brasil, o Bolsonarismo representou a narrativa máxima da organização deste capital, declarações como “A economia não pode parar” não foi um eco solitário e estranho em meio a crise global, possivelmente tenha sido apenas a versão mais autêntica e radical do pensamento e modelo vigente. É preciso termos isso em mente: A economia do mundo como conhecemos não parou ou se reformulou. Ela seguiu os rumos e nadou na busca de manter firme as suas estratégias de acumulo de poder e capital.

Enquanto o Brasil passava a boiada quase sem enfrentamento popular, pois por uma escolha política da militância organizada o Bolsonarismo seria disputado nas urnas, países em conflito se mantinham reféns de suas guerras. Os sistemas de pesquisa de vacinas e fármacos alinhados aos modelos de pesquisa do capital, onde se disputam os direitos autorais e de copyright, mesmo tendo sido mais rápidos que outrora, se travavam em burocracias e disputas das mais diversas. Enquanto nosso povo morria o agronegócio (base estratégica da economia brasileira hoje devido a equivocada política) fazia fortunas em giro de dinheiro com artistas de sertanejo. Mesmo mobilizações globais em defesa da pandemia se tornavam ferramentas de captação de recursos para determinados grupos. O mercado de luxo seguiu faturando enquanto populações sofriam. A morte inclusive é um meio de se fazer dinheiro, se assim não fosse não teríamos tantas guerras. Ironicamente um Trump cai com seu utraconservadorismo ao mesmo tempo em que se orgulha de não ter iniciado novas guerras. Graças ao mundo que não parou mas fingiu parar, hoje tanto a economia quanto a vida definham.

Faltou ao mundo a coragem de parar a roda da fortuna, reorganizar o sentido da vida social e recomeçar. O resultado é que o projeto ruiu, não resistiu, primeiro, começou a cair o radicalismo da direita e agora seguem balançando quaisquer representações que tentem manter este modelo sem discutir com seriedade uma saída global a crise instituída.

Em meio a esta crise o povo segue em desespero diante da falta de perspectiva, nada mais assusta ou acalma. Sem projetos globais convincentes, sem rompermos com o modelo presente de exploração de pessoas, de vidas em geral e de recursos, não vamos avançar. Seguiremos cavando os torpes caminhos de nossa extinção em massa. Neste processo que inclusive expõe a própria injustiça global, visto que nem na extinção encontramos os caminhos de igualdade: os mais pobres seguirão sendo eliminados primeiro.

A desesperança e o atual niilismo se dá devido termos uma sociedade que busca ansiosamente uma saída disso tudo e não encontra. Muitos deram um voto de confiança a uma fuga pelo ultraconservadorismo e ainda estão perdidas ao perceber que este também é parte do mesmo stablishment que tanto criticam e nos faz mal. Construir um mundo novo ainda é possível, porém cada vez mais difícil pois ele não será traçado por dentro das estruturas que estão consolidadas, mas também não creio que sobrevivam apenas por fora destas estruturas.

Precisamos disputar a base do globo, construir novas ferramentas e formas de pensar coletivamente e criar as barreiras necessárias para não sermos sufocados. Essa é a encruzilhada atual, não será simples ou agradável passar por ela, pode significar um enfrentamento em que não vejamos a linha final, um corre em que estaremos solitários quase como loucos isolados escrevendo nas pilastras do viaduto sobre mensagens de amor.

Mas será no corre simples, nas conversas de rua, nas atividades comunitárias que organizamos, nos papos de organização e na organização propriamente dita. a saída vai exigir uma linha singela de construção permanente de novas redes de sociabilidade. O duro é que para dar certo precisaremos nós mesmos, nós por nós criar as válvulas de escape da economia, fugindo de todas as teias que podem nos aprisionar a um determinado poder limitante dentro do sistema.

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brasil, política, Saúde

7 de abril: Dia Mundial da Saúde

Neste dia, apesar de ainda termos caminhos a avançar, já temos muito a celebrar. Embora vivamos em um país empobrecido e desigual, o nosso sistema de saúde consegue ser um exemplo robusto de que políticas de Estado destinadas ao povo podem ser realizadas. O que o SUS tem a nos ensinar em termos de organização política? Este texto será um pouco sobre isso.

O SUS modificou por completo a forma como tratamos a saúde, entendendo-a e assumindo-a como um direito universal do povo e como algo muito maior do que o simplismo de: tratar uma doença de um indivíduo. Alguns de nós hoje somos sequer incapazes de lembrar dos modos de funcionamento do sistema de saúde do país antes do SUS. Como conseguimos implementar uma política de Estado firme como essa em meio às muitas intempéries, revezes e crises de classe?

Primeiramente importa entendermos que nosso sistema atual é fruto de uma luta gradual e constante produzida por inúmeras mãos. A política de saúde só se torna possível de nascer em um país como o nosso devido o trabalho árduo de uma enormidade de cidadãos organizados nas redes de construção das mesmas. Falamos assim, de um trabalho que é acima de tudo coletivo, interdisciplinar e por que não dizer: militante.

Nada nasce da noite para o dia, se desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) o direito a saúde é vinculado ao direito à vida de todo ser humano, podemos dizer que, apenas na constituição de 1988 que o Brasil conseguiu inseri-lo como direito fundamental de todo cidadão. Tal direito é conquistado constitucionalmente a duras penas como resultado das imensas lutas do movimento da Reforma Sanitária que entendem que a saúde deva ser um Direito de todos e um Dever do Estado.

Desde a década de 70 até 88 o movimento se organiza no fortalecimento de encontros, simpósios, conferências, criação e fortalecimento de entidades profissionais dentre outros. Este trabalho, junto ao seio do povo foi de fundamental importância para a construção do novo conceito de saúde que viria a ser implementado no país. Se antes, saúde era algo destinado a alguns apenas, já nas décadas de 80 ela fora vista de forma abrangente e integradora da sociedade. Da porta do hospital ao saneamento de uma cidade, tudo era trabalhado na construção do sistema.

É esta multidão que constitui potência política suficiente para produzir no país um instrumento que garanta universalidade, equidade e integralidade de saúde a todos nós, ainda que muito precise ser feito para tal. Assim como todo projeto político, nada se completa ou termina em si mesmo, precisamos seguir a construção e as lutas a cada dia para garantir a consolidação e melhoria completa do mesmo. Entre as décadas de 70 e 90 (quando a lei é regulamentada) muitos passos foram dados nesta construção compartilhada.

Uma das maiores lições que a construção do nosso sistema de saúde nos traz é esta: não há saída por política que não envolva uma concepção popular para a mesma. O niilismo que enfrentamos hoje se dá por nossa atual incapacidade de organização coletiva focada em algo para além de um mero processo de espectador e torcida diante de disputas eleitorais de personalidades. A história por sua vez nos mostra que, o que menos importa na construção popular do nosso direito a saúde são os personagens, o mais importante mesmo está na rede de possibilidades que abrimos e que se mantém aberta para esta luta.

O SUS não é resultado da política de um homem ou de uma categoria apenas, sequer teria algum avanço significativo se assim o fosse. Ele é fruto do sonho de muitos que dedicaram e dedicam algum tempo em propor, em construir, em chegar junto nesta frente, do mais simples trabalho de base junto ao povo até os mais complexos trabalhos de gestão e planejamento nacional. É sob esse prisma que nossa Saúde é uma construção política! É um erro e porque não dizer uma antipolítica, quando reduzimos quaisquer construções a um viés pasteurizado e cristalizado de forma dentro das dinâmicas da vida social. Como as águas do rio de Heráclito as dinâmicas das lutas sociais acrescentaram bandeiras, formas, modelos, projetos, textos de lei ao grande corpo que se tornou o SUS. Ninguém precisou prender o pensamento a uma cor, um dogma ou um nome sequer.

Nosso direito a saúde aconteceu com o trabalho colaborativo produzido a cada dia, em cada esfera do cotidiano onde lutamos por uma qualidade de bem-estar. Sua luta é um modelo, seja na esfera individual, familiar, comunitária ou de estado, cabe a nós, enquanto cidadãos que tem interesse nas lutas comuns, seguir em frente, fugir das artimanhas dos laços menores e retomarmos as organizações para construção de um Brasil maior, com equidade, justiça social e direitos amplos e universais a todos os brasileiros.

Dentro disso, nós arquitetos, onde podemos nos posicionar? Um início é: garantir o direito fundamental a habitação, cidade e saneamento e fazer-se cumprir o artigo 6º da constituição. Se sonhamos em construir um dia neste país o SUS da Arquitetura, precisamos antes de mais nada, inserir constantemente a arquitetura nas pautas e formulações do SUS. Assim também, precisaremos enfrentar nosso olhar exclusivista e corporativista e aprender, como aqueles que construíram esta história nos ensinaram, de que as mudanças acontecem assim que nos abrirmos e ampliarmos a todos os ramos da sociedade que contribuem na boa formação do espaço vivido.

Que nossas lutas pela saúde universal sigam sem esmorecer e sigam sendo exemplo do que é a boa prática política. Só assim poderemos retomar os rumos, romper com a atual crise que este ciclo bianual de rinhas em torno de figurões messiânicos produzidos pelas grandes ferramentas de marketing eleitoral. Lembrando que, esta imensa conquista que é nosso sistema de saúde pública é fruto destas lutas.

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brasil, política

Nos subúrbios a ditadura nunca acabou!

Ela segue firme nas rondas da PM, no carro da linguiça, nas mãos que tem cheiro de morte. Segue a cada em cada silenciamento. Tem ruas onde andar as 22h se torna arriscado, ou você será vítima ou será confundido com um possível meliante. Meliante, sinônimo de vagabundo, termo que até algum tempo atrás tipificava um crime que hoje já não é mais. Porém o termo está aí, e com ele a tipificação das pessoas. Nos subúrbios e favelas a gente tem que andar com documentos sempre em mãos, quiçá um comprovante de residência, pois aqui ela nunca acabou.

Aqui tem que se tomar cuidado! Nos tempos onde as classes média e abastada progressistas do país conseguiam construir uma resistência a 64, apanhavam, morriam, eram torturadas, nasciam também os cavalos corredores, os matadores e a milícia. Ali se estruturou a cultura da morte e da chacina, o alvo apenas mudou, foi para um canto da cidade mais silencioso e invisível e se tornou mais palatável. Quantos Herzogs perdemos nas guerras das favelas, ainda jovens e adolescentes? Quantos corpos seguem desaparecidos pelas ruas da baixada? famílias que nunca mais viram seus parentes, muitos deles crianças cujo crime naquela rua seria o lazer de uma festa de bacana.

Na Copa das Copas, os porões da ditadura que estavam operando no Haiti também operaram nas favelas, estavam exército, polícia, milícia e certas igrejas construindo o mais duro cerceamento de ir e vir garantindo aos brasileiros e estrangeiros que podiam pagar a fortuna de ingresso da copa tivessem o sossego e tranquilidade de não ver nossa miséria humana. A regulamentação da Garantia de Lei e Ordem em 2013 e as mais de 30 operações militares subsequentes no país entre 2013 e 2018 também foram importantes máquinas de fortalecimento desta casta. Só como adendo, o período de 2014 a 2016 vivemos os mais altos índices de pessoas desaparecidas por violência dos últimos anos, com média de mais de seis mil por ano, imensa maioria da Baixada Fluminense, Subúrbios e Favelas.

A nós que somos do Rio, lembramos dos caveirões que saiam a noite pra matar na favela e viraram atração turística na porta do Maraca. Os poderes escolheram perdoar sem perdoar, premiaram os generais e coronéis dando-lhes legitimidade. E hoje é o que temos, a presidência das milícias.

Às vezes me perguntam o por quê dos mais pobres não se assustarem tanto com a lógica dessa gente? Não vejo uma resposta tão clara, mas talvez o indício principal passe por aí: Para os mais pobres, a ditadura nunca acabou, governo a governo ela está aí, a cada dia com uma máscara diferente, vislumbrando como manter a rede de negócios, acharco e chacinas. A ditadura virou nosso cotidiano, e sobrevivemos nas brechas e com base nas leis dela. Não há primeira instância para quem é pobre, não há STF, esse universo é longínquo e pertencente a outra casta social, o pobre tem na frente a lei do cão e a prece pelo milagre.

Vamos precisar de muito peito e coragem pra enfrentar definitivamente isso tudo. Enfrentar com projeto político, reconstruir um sistema de segurança pública cuja função seja a proteção, investigação e prevenção, retirando dele este modus operandi enviesado cuja base é a suspeita individual com viés racista, a operação espalhafatosa pra sair na mídia e a corrupção que mantém tudo girando, ninguém chamaria Tom Jobim de meliante.

Sim, ela, a doce corrupção, a nota de cinquenta caminha pela cidade. Papel moeda que vira canudo pra PM cheirar pó depois de matar o garoto que lhe vendeu, vira oferta na igreja que é usada pra lavar dinheiro para o sistema vira o troco da carteira do filho do juíz que vai fumar seu baseado enquanto bate palma pro por do sol da cidade maravilhosa. Ali, onde o Rio é cidade maravilhosa, não passa o carro da linguiça, ninguém precisa provar que trabalha, ninguém precisa andar com nota fiscal da bicicleta no bolso, ali se é livre e ninguém morre assassinado porque acendeu um baseado na praia do arpoador, ao contrário vira hype.

É isso, quando os porões da ditadura sucumbiram de atacar a classe média que lutava por liberdade, os seus assassinos foram também anistiados e ganharam um espaço pra chamar de seu, pra ser os novos porões. Com base nos batalhões da Policia Militar, saíram a praticar todo o seu conceito e este novo porão chamamos de Subúrbios, de Favelas, de Baixada Fluminense. É ali, onde os mais pobres moram, não tem voz e nem liberdade de ser quem são, como são e andarem por onde quiserem, sem viver de perto o cotidiano da violência endêmica deste Estado.

1964 nunca acabou e isso precisamos ter na mente e no coração da gente.

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brasil, política

Atingimos o volume morto eleitoral

Iniciarei aqui usando um termo do camarada militante da cultura Pablo Meijueiro: “atingimos o volume morto” das estratégias de coligações. Dito isso, inicio este texto (que assim como muitos outros meus) tende a desagradar boa parte da militância ufanista. O jogo das peças políticas começou a desenhar um quadro muito curioso na polarização. Primeiro vamos elencar alguns movimentos:

  • A aproximação de Lula e Alckmin, que significa uma tentativa de aproximação de Lula com parte significativa da elite brasileira que não se sente confortável com o Bolsonarismo,
  • A aproximação de alguns partidos de esquerda como o PSOL ao projeto,
  • O movimento das mesmas peças em torno do fortalecimento da polarização eleitoral na disputa Bolsonaro vs Lula,
  • A ausência de otimismo popular em torno de quaisquer dos projetos eleitorais aqui apresentados,

Bom, um primeiro trabalho que começamos a notar é a dificuldade de se constituir uma campanha de marketing que consiga alinhavar tudo isso. Na cabeça popular, que acompanhou ano a ano um nome como o Alckmin/PSDB ser dilacerado pelas campanhas do PT, nunca soará fácil compreender tal aliança, ainda mais vinda com um política que almeja o poder presidencial. Todos aqueles que se colocam como um centro, um moderado, ou alguém que não se encontra à esquerda do espectro ideológico enxergará isso como algo puramente eleitoreiro e oportunista, talvez até como um desespero pela volta ao poder pelo poder.

Para as forças a esquerda, todo este quadro do volume morto representa algo pior. Partidos que se constituíram como uma alternativa de renascimento da esquerda, simplesmente definharam ao aceitar tal projeto posto. Podem assim, cair no isolamento completo, não serão reconhecidos como uma possibilidade de mudança por parte da população que almeja isso e também não serão aceitos pela parte mais centro direita. A estes, só restarão as migalhas do poder que cairá da mesa (caso o projeto vença o pleito).

É realmente triste ver a decadência deste projeto, ver que o povo mesmo, este de onde a esquerda deveria nascer e para o qual deveria construir, está fora da contabilidade dos marketeiros da política. As alianças primordiais do Lula são com o Pato da FIESP, o mesmo que foi acusado do golpe e é com este que a esquerda hegemônica vai caminhar. Quem não abraçar isso será taxado de bolsonarista, jogo da direita, sectário, e qualquer outra patifaria de argumento ad hominen possível de ser gralhado nas redes sociais organizadas para o cancelamento.

Lula e Boulos são quadros de momentos históricos únicos. Assim como Lula nasce politicamente do seio das lutas trabalhistas, potentes para mobilizar parte significativa do povo, Boulos nasce do seio das novas lutas contra a precarização, a luta pelo direito a cidade, habitação, mobilidade, para os mais pobres. As escolhas porém deste segundo parecem frear a potencia desta história, fica para trás a força popular que o emanou em nome de um projeto maior que é a unidade liberal. Aceita-se recuar na disputa do Executivo do Estado ou do Federal em nome de apoiar um projeto de poder que inclui aquelas forças que pactuam com os principais adversários de classe de sua base (especuladores imobiliários, grandes empresários, entre outros).

É trágico ver que a história busca ciclos e que a tática da esquerda segue cristalizada. O governo Lula e Alckmin representará a continuidade do governo liberal que a esquerda tanto diz combater, e este governo será assumido socialmente pela tinta vermelha desta mesma esquerda. O ônus deste governo para o povo recairá sobre a esquerda. Chega a ofender quando vemos Pinheirinho ser usado de palanque eleitoral em um projeto que tem a tiracolo elevar a vice as forças econômicas que, na condição de governo de São Paulo, produziram um massacre repleto de abusos policiais que chegou a ser denunciado na ONU. A operação em Pinheirinho tem todos os adornos historicamente construídos como método policial e miliciano. Nada neste fato difere da base material e simbólica que deu o poder ao Bolsonarismo. Portanto, nada neste palanque se torna alternativa concreta de mudança social para este povo.

A escolha de Boulos não foi revolucionária ou potente. Pôs no freio das possibilidades reais de produzir mudança e assumir o conforto eleitoral do cargo legislativo, onde pode manter-se por anos sendo eleito com seu nicho de votos. Tudo ocorre em nome desta contagem de votos e partilha eleitoral que não chega e não toca mais o anseio do povo.

Junto a isso, vemos uma campanha massiva de tentativa de convencimento dos jovens a tirar o título de eleitor e votar. Sim, pois votar passivamente se tornou o único papel político do povo que realmente importa para esta projeto. Vemos uma campanha que beira o assédio moral aos mais jovens, público que nasceu ali por volta de 2005 e 2006 e que começou a entender um pouco de seu lugar no País por volta de 2014, isso é, já na crise e terra arrasada dos pós megaeventos (copa e olimpíadas). É de um otimismo muito grande esperar que estes jovens que não enxergam mais representatividade em nada do que está posto, assumam o papel de protagonistas da vitória eleitoral desta estratégia. É capaz de muitos destes jovens ainda votarem em um Bolsonaro na vida e serem xingados pela máquina militante das esquerdas.

Partimos do pressuposto que por ser jovem ele deve votar na esquerda (é um cânone divino estar do lado certo da história). Esta mesma esquerda que ele não vê atuando em absolutamente nada além de pequenos nichos com discursos pré-prontos e que muitas das vezes beira um certo cinismo. Há de pensar: Estes jovens, assim como boa parte do povo enxerga com clareza que, em meio a pandemia, quando explodiu uma possibilidade real de Fora Bolsonaro devido o mesmo estar literalmente forçando a morte da população, as organizações de esquerda esfriaram quaisquer manifestações antes que tomasse vultos incontroláveis. Enxergam com clareza que o fascista de ontem virou o amigo e vice de hoje, que o roubo do MEC não gera uma manifestação organizada ou greve, e que interessou a estas forças progressistas que o Bolsonaro permanecesse presidente até a eleição.

Veja que, a base bolsonarista das igrejas neopetencostais que se tornaram máquinas de poder e lavagem de dinheiro (uma ofensa a fé do povo), suga dinheiro do sistema de educação do Brasil e isso não virou uma manifestação de massa no dia seguinte. A esquerda parece não ter coragem de assumir a corrupção política como pauta para si, uma pauta que capitaneia a indignação do povo não é trabalhada por nenhum grupo político organizado.

Me perdoem se usei a expressão -projeto de poder-, não cabe projeto no que está dado, o que temos é uma estratégia de troca de personagens no jogo político, projeto exigiria outra construção. A polarização reflete o nosso fracasso em qualquer tentativa de alternativa a tudo que está dado, aceitamos ou fomos entubados pelo jogo político onde o fim disso tudo pode ser trágico. A esquerda como conhecemos seguirá morta, morrerá vença quem vencer, mas talvez ela precise morrer para renascer. A estratégia Lulista de garantir-se na política do establishment e usar o Bolsonaro como escada eleitoral, minguando toda e qualquer força que seja autônoma ou possibilidade a isso tudo pode dar com os burros n’água, pois querendo ou não, mesmo que vença, não será simples garantir o engajamento popular para a manutenção do poder.

O que mais me incomoda nisso tudo não é o pragmatismo do jogo político eleitoral. O povo toparia o pragmatismo pelo pragmatismo, votar num nome como se este fosse o mais do mesmo, quantos não são eleitos assim? O que incomoda mesmo é o cinismo de pintar, o tempo todo, as artimanhas e movimentos das peças e do dinheiro envolvido nisso como um jogo do bem e do mal e como se os fins justificassem os meios de uma revolução lá na frente que nunca virá.

Aqueles que não aceitam a chantagem e o assédio moral eleitoral serão vistos como inimigos, e falas e textos como esse serão vendidos como mais incômodos do que um jantar com o Alckmin, cujo prato pagaria a cesta básica de famílias inteiras que estão passando fome nesse Brasil. E o desespero que começa a bater está justamente aí, os mapeamentos estão mostrando que ano a ano, a chantagem e o assédio funcionam cada vez menos e o povo se torna cada vez mais descrente das organizações coletivas que deveriam promover mudanças e engajamento de base e nas bases, mas são minadas ou aparelhadas por este jogo.

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Brasil um país cujo projeto de vida é não ter projeto nenhum

Desde que a humanidade tomou consciência de si e constituiu sociedade que ela tem de lidar com os mais difíceis desafios da natureza. Construindo ferramental prático, técnico, teórico e científico para resistir e construir seus espaços de garantia de bem viver.

Impressiona como um país como o Brasil sucumbiu a um projeto de existência terminal, tornando-se incapaz de enfrentar quaisquer questões mais severas. Em mais de 500 anos de história de ocupação colonizadora, e milhares de anos de ocupação do território pela humanidade, nossa história é marcada pelo constante achatamento da produção científica e técnica e do conhecimento como um todo. Ensino de qualidade sempre foi um projeto excludente no país, as pouquíssimas tentativas de formação de educação de base com qualidade e democrática foram rapidamente arrasadas, tão logo tentava-se instituir. Esta construção de nação dá o tom da nossa sociedade, um país com projetos rasos e efêmeros, que pouco valoriza a capacidade técnica e que entrega a sorte e ao destino todos os seus.

A destruição de Petrópolis, uma das cidades símbolo da história deste país, se torna mais um capítulo desta tragédia chamada Brasil. Não há surpresa no acontecido, a real é que há negligência histórica em lidar com a necessidade de se planejar. A tragédia é o desfecho de uma lógica que atravessa todo o sistema do campo da construção deste país. Embora seja um dos campos de trabalho e mercado que são estratégicos para o giro da economia, ele sempre opera de forma leviana. Preferimos construir estádios a hospitais, preferimos construir megamuseus a sistemas de saneamento, preferimos entregar o valor da terra por aumento de gabarito a respeitar limites ambientais frágeis. Esta é a cara das obras e da gestão pública neste lugar.

A política educacional, nossa principal chave de mudança está também destruída. Escolas funcionam como depósitos de jovens sem perspectiva. O sistema de universidades se tornou mera ferramenta de arrecadação financeira para grandes corporações e formação de mão de obra pouco reflexiva, isso em um país que é incapaz de absorver sequer um terço desta mão de obra formada. São décadas em que o projeto é achatar a produção de conhecimento, um projeto que se dá com mudanças gradativas.

Para piorar o caso, quaisquer forças progressistas atualmente organizadas se tornaram meros agentes de reação a tudo que surge, sem que se construa alternativas de saída. Tudo se resume a marketing e estratégia furada, o que também é um reflexo claro de um povo que pouco lê, que pouco consegue estudar e trabalhar por si mesmo a crítica, a reflexão e a produção de ideias. Não basta ao país apenas consumir, andar de avião, ter geladeira, ter televisão, precisamos de um país que saiba construir isso tudo, que saiba produzir tecnologias de defesa, que saiba monitorar tecnicamente os riscos de tragédia, entre outros.

Vivemos no desespero, em uma espécie de deixa acontecer e vamos ficando aqui. O Brasil na real não vive mais, apenas segue existindo enquanto respira. Este desespero que produz o crescimento das mais diversas formas de fé, de crença, de busca messiânica e equivocada de uma saída ou uma fuga.

Consta que, para sairmos deste abismo nacional, precisaríamos de um trabalho de longos anos. Precisaríamos recuperar os esforços em um projeto de educação concreto que garanta a nós formação suficiente para lidar com o revés do mundo. E um primeiro passo precisa ser tomado, a construção de um desejo de Nação, de nos entendermos como um povo onde um são todos, onde um cidadão não é problema só de si mesmo, mas um problema da cidade. Em resumo, precisaremos reconstruir o sentido coletivo da vida, o sentido político dela.

Temos de enfrentar fortemente a inércia que a tábula rasa dos 4 anos eleitorais coloca. Precisamos consolidar um olhar científico e técnico integrado, romper com o viés corporativo e particionado do indivíduo em si mesmo, do profissional em si mesmo, do saber como uma caixa cartesiana. Precisamos recuperar a costura e o sentido da função social do nosso trabalho e explodir os sistemas de captura financeira da vida. Não dá mais para aceitar cidades definidas e geridas com base em especulação financeira da terra, não dá mais para pensar hospitais geridos por quem vende nossa saúde a preço de banana, não dá mais para pensar a produção alimentar com base no lucro que posso ter com a fome do povo. Sem um olhar integral da vida, não sairemos desta lógica de ser um país cujo único projeto parece ser o de se tornar uma fazenda para o mundo onde poucas famílias fazem fortuna às custas da miséria de todos.

Petrópolis, Brumadinho, Morro do Bumba, Chuvas de 86, a história do nosso fracasso social segue cíclica.

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Reflexão sobre o processo de refração dos coletivos e identidades

É possível pensarmos que as formas de organização coletivas que se tornaram um modelo padrão nas últimas décadas esteja chegando em um momento de refração.

Já é notável que, de alguns anos para cá este modelo foi perdendo sua autonomia como forma de resistência e sendo capturado pelo sistema do capital, seja pela ferramenta de fomentos financeiros, seja pela atração do trabalho para dentro do modelo de mercado, os coletivos foram ganhando cada vez mais um tom de pequenas e micro-empresas (mesmo sem ser). Esta queda, que acabou por criar relações de competição entre grupos, e afastamento de muitos que buscavam nestes uma linha de fuga, ajudou a desmobilizar possíveis redes com capilaridade e capacidade de produzir outras formas de vivência, de distribuição de força de trabalho, de fazer política.

Além deste, a organização em coletivos que se encontra capturada pelo sistema de poder, acaba por viver em si mesma, presa na necessidade da própria sobrevivência, como quaisquer brasileiros que não tem capital ou herança. Mas a questão dada é: o que fazer diante disso?

Se não se consegue mais retirar os coletivos e similares do sistema, pois os mesmos precisam dos parcos recursos fornecidos pelo sistema, e ao mesmo tempo não podemos mais contestar este sistema pelo risco de ser isolado do acesso aos parcos recursos, fica a questão: Como retomar caminhos de mobilização para além deste?

Da mesma forma caminha a questão das lutas identitárias. Não é nas pautas que caminha o problema, mas na forma como muitos grupos acabaram caindo no controle deste mesmo capital, que por necessidade de recursos pra sobreviver, caíram no fluxo tradicional e não conseguem mais ter força para traçar um contrafluxo ou uma saída alternativa ao mesmo.

Cada vez mais entendo que devamos disputar a sociedade orgânica, aquela que não está organizada mas é capaz de construir sua sobrevivência apesar da escassez. Esta sociedade não precisa se entender por uma identidade necessariamente, mas muitas das vezes por uma enunciação coletiva. Num dado momento vizinhos que se odeiam podem construir um laço tático de saída de um confronto maior. Vizinhos que nunca se falam não precisam deixar um ao outro passar fome, essa é a questão.

Entendo que esta disputa também não se dará por círculos de coletivos organizados, mas por entendermos o modelo de funcionamento social dos mais pobres ao mesmo tempo em que estruturamos uma saída social e econômica de massa, um projeto amplo de emancipação nacional.

Hoje as alas mais progressistas seguem perdidas em si mesmas, transformou-se o Ser de Esquerda em uma identidade que representa tudo aquilo que é bom. Uma leitura essencialista que nem o Marx em sua fase filosófica (como um dos filósofos da suspeita) ou os existencialistas e percursores das teorias em torno das minorias e identidades pensariam. Possivelmente um Marx em 2022 estaria escrevendo altas críticas a este bloco e se dedicando a ler os principais pensadores sociais e econômicos dos mais diversos campos e lidas.

Precisamos antes de mais nada aceitar quem somos: um país complexo, com pouco estudo, cuja base política se funda a partir das forças militares e oligárquicas, de bases religiosas fortes e cujo progressismo e conservadorismo disputam intensamente uma classe média. Boa parte da nossa esquerda nunca leu Marx a fundo e boa parte da nossa direita também nunca leu seus autores de fundação e citação a fundo. O que temos em maior força parece sempre ser o senso comum. Enquanto isso os mais pobres lutam por sua sobrevivência e buscam o acalanto nas mais diversas formas de expressão e espaços que sobram (sejam igrejas, botequins, rodas de vizinho, etc).

Pensar este tipo de projeto no Brasil é um enfrentamento difícil e delicado, visto nossa política ser tradicionalmente um campo de projetos de curta distância e tábulas rasas sobre projetos passados. O Brasil, enquanto país das dimensões e complexidades que tem, não pode se dar ao luxo de viver rateado por meia dúzia de famílias e eminencias pardas do poder cuja linhagem pode ser traçada desde sua origem.

É por esta complexidade que precisamos pesar nosso caminho. Que projeto de Brasil queremos e precisamos? Não bastará dizer aos céus: Somos a Esquerda, somos o lado certo da história! Todos aqueles que no Rio de Janeiro por exemplo viram as remoções para as obras olímpicas e da copa das copas, todos que viram sua casa cair com a pichação SMH tocada pelo maior partido de esquerda do país a época, não considerarão este o lado bom da história. O teleférico parado do Alemão é uma obra dessa esquerda que está sempre no lado bom da história, e quem está fora da bolha sabe que boa parte da recessão do país vem daí.

O Brasil quer uma saída disso e nisso, é preciso entender que muitos dos que votaram em Bolsonaro em 2018 sabiam o que era o Bolsonaro e aceitaram o risco social. Foi uma escolha também do povo, este mesmo povo que só se ferra na história e que várias vezes é taxado por memes como culpado. Não foi culpa, foi desespero, desespero de inúmeras pessoas que aceitavam qualquer coisa por alguma mudança. A burrice desta esquerda que ama desesperadamente os espaços de poder é que, no auge de sua arrogância segue sendo a melhor das opções sem sequer sentar com este povo para traçar um caminho comum e popular, segue apregoada entre os seus na busca do caminho certo da história sem construir uma alternativa a si mesma que não seja o retorno ao passado.

Porém diante disso fica a pergunta de Nietsche: “Você viveria sua vida mais uma vez e outra, e assim eternamente?” ao qual, a maioria dos brasileiros, cansados e exaustos do peso da vida, do peso da pobreza e das dores nas articulações dificilmente responderiam um sim. Como seremos capazes de construir um país que nunca foi construído? com acesso a educação de base universal e de qualidade a todos os brasileiros, quando veremos um arranjo político capaz de produzir um planejamento viável de se executar para os próximos 10 ou 20 anos? sob quais ferramentas seremos capazes de reconstruir o Estado a ponto de dar os direitos básicos da existência da vida aos mais pobres?

Da mesma forma, quando vamos ser capazes de aprender com os mais pobres que as lutas da vida não cabem nas caixinhas pré-formuladas que tanto travaram os coletivos e muitos grupamentos que tentam lutar por um mundo melhor?

Cada vez mais creio que os novos caminhos passarão por isso: Um projeto nacional viável, somado a capacidade de compreender e estarmos junto nas redes mais orgânicas da sociedade. Só por aí seremos capazes de combater o niilismo político em que estamos e o cansaço na busca da construção de novos valores éticos que sejam capazes de repactuar nossa sociedade. Não é simples, e não há saída concreta seja pelo retorno ao passado onírico ou expectativa de um futuro que nunca vem. A saída estará na capacidade de trazermos resposta coerente para resolver este presente material em que estamos assentados.

criança de bicicleta em via expressa do BRT
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Eu tenho você não tem

Por que em meio a tanta miséria parte significativa do povo ainda enxerga com prazer a ostentação?  Copos da Stanley de centenas de reais, bezerros dourados na capital paulista, farras em apartamentos de luxo. Porém não é só nas estratificações mais ricas da sociedade que habita esta forma de pensar.

Se tem uma coisa que o capital soube explorar muito bem é o fetiche da mercadoria. Ele trabalha como desejo e o simbólico para transformar o tempo todo um produto em algo mais desejável. Com a artimanha da publicidade, qualquer coisa pode ser desfigurada do trabalho empreendido e remodelado para algo mais palatável ao nosso imaginário. Este é um bombardeamento que vemos todos os dias.

No Brasil, isso se torna altamente nocivo a medida em que nossa concepção de sucesso se baseia muitas das vezes em um excerto de bens de consumo como símbolo de ascensão social.  Vou citar aqui um fragmento do camarada Diego Felipe, professor de filosofia, pensador suburbano e midiativista sobre o tema quando ele relembra de uma antiga propaganda de TV:

“É a posse de “coisas exclusivas” que permite a diferenciação entre os “estamentos da sociedade”. É um valor neoliberal que nos anos 90 foi bem materializado em uma propaganda de um produto escolar, uma tesoura do Mickey anunciada pelo jargão “eu tenho você não tem”. Esta “mentalidade psicológica infantil” que é reproduzida pela ideologia neoliberal vale para tudo hoje. De marcas de carro que são vendidas a preços surreais até os últimos modelos de videogames como o Playstation 5. Para a elite brasileira mais vale pagar caro e ter o que os outros não têm, do que pagar preços justos e não poder afirmar status diferenciados”.

Independente do trabalho empreendido, há um grau de exclusividade que é engendrado em certas marcas, onde é notório que tanto a técnica quanto as tecnologias envolvidas não são os elementos principais que definem o custo. Quantas não são as diferentes lojas de roupas cujas camisas vem de uma mesma fábrica chinesa? Produtos similares com etiquetas distintas se diferem em preço via capacidade que uma marca x ou y tem de capilarizar na sociedade o seu sentido de ser. É por conta disso que um mesmo tipo de camisa de malha pode variar de 30 a 300 reais.

O Brasil tem se habituado a estar nesta construção onde a aceitação social está diretamente ligada a capacidade de consumir os mais diversos produtos, tendo como principal fundamento mostrar que o indivíduo está em outra estratificação econômica. É com base nisso que uma pessoa que melhora minimamente sua condição financeira aceita endividar-se para ter o carro do ano, a roupa da marca mais cara, a decoração de interiores da tendência, o celular que poucos conseguem ter. Cabe a própria pessoa, após a compra, criar a justificativa que valide a qualidade de forma a aceitar o preço. Para algumas, isso precisa ser devidamente registrado nas redes sociais, a vitrine onde todos parecem agir como pessoas públicas. Enquanto somos tomados por esta onda de mercado, vamos sentido o esvaziamento do sentido de ser no mundo batendo a nossa porta.

O ciclo do fetiche ostentação nos coloca numa prisão sem muros, onde cada fluxo de pensamento direciona a vida em função do que os outros tendem a pensar sobre nossas posses. O que passamos a construir é um laço constante de servidão e uma tentativa de responder a grande crise existencial a partir de redes de ressentimento. No fim todos sofrem, o consumista ressentido que não consegue encontrar um sentido profundo no que faz e nos objetos que compra e consome e aqueles que não conseguem alcançar uma linha de consumo e acabam por ser segregados pelo primeiro grupo.

O ser humano que antes recorria ao transcendente como uma recusa a vida real ainda era capaz de enxergar um tempo estendido, um mundo póstumo, uma obra permanente fazia significado. Hoje, no aprisionamento do fetiche, esta forma de apaziguar seus demônios tem um grau de imediatismo extremamente alto. Tão alto que a relação entre o prazer da ostentação e a frustração com o objeto precisa ser constantemente renovada.

A trilha aberta não traz respostas e faz o ser humano estar frente a frente com a fraqueza. Talvez por ser incapaz de sobreviver a existência do que é viver sem saber ao certo quanto tempo temos, para que estamos vivos aqui e sem termos nenhuma garantia de redes de proteção. Assim, não escapa do bombardeamento social, deste imenso campo de disputa onde cada indivíduo tem o “dever” de mostrar que venceu na vida. Nisto, o que construímos é um sistema social e cultural de pirâmide cuja prova do sucesso vem do comparativo entre aqueles que conseguem ter com o que não tem (seja o que for, ainda que não seja útil).

Este sistema de – consumo, fetiche e ressentimento- não resolve a crise e a existência humana, antes disso ele aprofunda. Existir envolve a nossa capacidade de afetar, de agir no mundo, de produzir e criar e de, mesmo que de maneira inconsciente, operarmos pela preservação do coletivo. Somos seres fracos quando prostrados na lógica do consumo cuja exclusividade alimenta nosso ego pela depreciação do nosso semelhante. Por sua vez, somos mais fortes conforme somos lançados no oceano do acaso criando ciclos de produção coletiva da vida e do próprio sentido dela.

Precisamos repensar um novo caminho, onde seguir em frente passe pela força de suportar as agruras e dores que o acaso abre. Mais que isso, precisamos recuperar uma ética que nos trouxe e nos manteve vivos até aqui. Apesar dos pesares, o ser humano traz em si o desejo de viver e seguir vivo, por mais caótico e casuístico que seja a trilha.

Podemos ter um exemplo destes caminhos na dolorosa estrada do Samba, que como bem lembrava Nelson Sargento: foi duramente perseguido. Em meio ao massacre que tenta constantemente apagar da história a potência de muitos povos, alegria de Jovelina está em formar uma corrente com elos muito resistentes, daqueles que levam bom tempo para arrebentar só para incomodar muita gente que quer terminar com nossa cultura.

É um crime pagar 200 reais em uma camiseta de malha da Osklen que não tem nada de muito diferente de uma camisa de 50 reais da Hering? Não, mas deveria ser no mínimo ofensivo acharmos isso normal em um país que parte gigante de sua população passa fome. Esse é nosso bezerro de ouro da escala do cotidiano e é isso que precisamos desnaturalizar. E se é pra comprar roupa, por que não passarmos na feirinha da Pavuna primeiro?

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Sobre a complexidade dos Subúrbios segregados

Desde a mudança da organização administrativa da cidade do Rio que dividiu a cidade por Áreas de Planejamento e Regiões Administrativas e as legislações vigentes se deram rua a rua, o termo Subúrbio não cabe na lógica formal do planejamento e da administração pública. Ele porém segue pairando no ar como uma enunciação coletiva.

A cidade segregada se deu durante anos por conta de expropriação de tributos de determinadas zonas da cidade e de uma escolha clara de como se daria a distribuição espacial deste território. Assim, as administrações vigentes atuaram de modo a privilegiar um lado específico que seria destinado aos mais ricos e grande parte da classe média. Expropriação esta, que por sua vez nunca foi corrigida por nenhum governo.

Hoje, a melhor expressão de Subúrbios é muito menos territorial e muito mais sob modos de fazer do povo. A construção de laços dos mais diversos. Parte da sociedade organizada em torno desta enunciação busca um caminho de costura e reconstrução do que seria esta identidade. A identidade por sua vez nunca dará conta da complexidade e das dinâmicas populares que giram em torno do sentido de ser ou não ser suburbano no Rio de Janeiro.

Boa parte da pujança e do imaginário se constituiu por algumas políticas de Estado. Escolas públicas, habitação de interesse social, eventos cívicos, o Varguismo teve um papel importante nesta construção. Soma-se a isso a enorme resistência dos povos negros, sempre preteridos e vilipendiados na sociedade, são eles que constroem em seus terreiros, aquilombamentos e barracões o mundo do samba, do funk, da soul music, dos encontros na escassez e da fé. Os Subúrbios são um amálgama disso tudo e muito mais.

Se a relação da cidade formal com a favela é de medo e terror, onde o que separa a favela da cidade formal é que é aceitável pelo sistema o direito do Estado matar na favela e de tratar seus moradores como não cidadãos, nos bairros dos subúrbios que não são considerados favela é dado a invisibilidade e a captura pelo exotismo. Assim, passa ano e sai ano, e cada administração pública usa de uma lógica específica para tentar capturar o discurso e amarrar em torno de uma identidade passível de ser controlada.

As décadas de 70, 80 e 90 levaram os moradores de regiões ditas suburbanas a migrar para uma emergente Barra da Tijuca onde os modos de vida e cultura deste novo modelo de cidade eram vendidos diariamente. Quem viveu estes anos se lembrará de como era matéria dos principais programas de estilo de vida as idas de jogadores e artistas a churrascarias e restaurantes, como era legal o jogador de futebol faltar o treino pra bater um futvolei na praia e muitas outras referências. Enquanto isso, no território onde muitas destes nasceram e se iniciaram, o que vingava eram os bailes. Dentre eles, um modelo ganhou força e ajudou ainda mais a segregar a cidade, os Bailes de Corredor. Os Bailes de Corredor mudaram muito a forma como o adolescente curtia a festa e vivia a própria cidade, pois alimentava um bairrismo combativo. Em pouco tempo, jovens passaram a frequentar festas de outros bairros apenas no intento da disputa.

A beira disso, também nestes anos, explodem o modelo evangélico neo-petencostal Macedos e Malafaias como grandes expoentes, mas este modelo não pode ter essa leitura simplista. O neopetencostalismo opera muito menos por meio do texto escrito, de uma liturgia organizada e centralizada, e muito mais pela experiência pessoal de transcendência. A forma de fé cresce por sua simplicidade organizativa, basta uma liderança capaz de produzir contato com o transcendente e ali poderia se fazer um círculo de oração, um ponto ou até mesmo uma igreja.

Ao definir o adversário a partir de qualquer um que não professe a fé, o petencostes por sua vez acaba que promove um movimento silencioso e silenciador. O fiel não deve se misturar ao mundo, deve produzir a si mesmo e estar junto com os seus (a igreja) num laço de santidade. Para o neopetencostal, o outro tende a ser um desagregado que leva a vida influenciada pelo adversário. A situação piora diante de outras crenças, em especial as crenças de matriz africana, onde aí sim quem as professa é visto como um profeta do adversário. Este tipo de signo constrói boa parte do campo de fé suburbano hoje em dia, de fortalecimento social e caminhos de coletividade. Dali levantam-se muitas lideranças, e outras muitas ainda se aproveitam para usar deste sistema como palanque. Mas ainda assim é preciso nos aprofundarmos nas relações e nos sombreamentos, pois uma profetiza neopetencostal em um círculo de oração está muito mais próxima dos modos de viver de uma benzedeira ou mãe de santo do que de um Silas Malafaia da vida.

Ainda assim, é curiosa a relação de conflitos que apesar de parecer maniqueísta, muitas das vezes passa por um relativismo. Quantas não são as famílias suburbanas que tem sentado na mesa um filho que trabalha para a polícia (uma das possibilidades de emprego e saída pra vida do pobre) e um filho que vive de dinheiro da contravenção? Mas nossas formas de entender certos signos sempre serão outras.

Quando a gente é pobre pra valer a gente vem forjado na violência, no palavrão, no papo reto, e na ação visceral. Quem tem fome precisa ser visceral pra sobreviver, mas também é solidário. A gente aprende a lidar com os signos de forma diferente, a lidar com o senso de justiça de forma diferente, pq a vida violenta a gente.

A vida violenta quando todos parecem amigos, mas uma mudança simples no recorte de classe deixa claro quem está num ciclo abaixo da pobreza, violenta quando as coisas e lugares que frequentamos são preteridos ou esquecidos na história. É violento quando alguém tem medo do seu lugar, da sua rua, do seu lote. É assim que a gente é criado, isso traz signos pra gente lidar com a vida.

O projeto de poder dos que conseguem gerir o sistema (mega empresas, governos, ricos, investidores, etc) envolve a manutenção de um modelo inspirado em uma certa classe média modelo. Não há um traço político concreto que seja realmente popular e massificado, capaz de interpretar os signos e criar uma política de estado em torno deles. O trabalho feito é capturar tudo que pode, gerenciar as vozes e interlocutores dissonantes por meio de inúmeros sistemas de controle social (como a lei da vadiagem por exemplo).

É assim que por exemplo, não há nenhum projeto significativo de planejamento de recomposição da cidade formal que gere pólos de interesse pra classe média reocupar os subúrbios cariocas. Ao mesmo tempo, há interesse do poder imobiliário (entre outros) em movimentar parte de sua economia nestes territórios hoje bastante esvaziados reconfigurando-o como espaços do modelo padrão de consumo da classe média (a forma condominial apelidado de barra da tijucanização por exemplo).

Por outro viés, parte dos modos de fazer e cultura que tanto manteve o povo vivo em tempos de escassez e do esquecimento político é traduzido e adequado para ser digerido e palatável a parte da classe média que tensiona ou entende o peso da desigualdade. Porém tudo é escolha, exemplos: ao invés de por pra frente uma política de revitalização dos centros de bairro a partir de seus cinemas de rua, a política de cinema de rua escolhe um cinema de um bairro específico, revitaliza e considera este um pelo todo. Assim que tudo é feito, escolhem-se alguns bairros e trazem alguns melhoramentos estruturais coletivos nestes e fazem o um ser a representação do todo.

Não é simples trabalhar com o sentido dos Subúrbios no seu espectro mais complexo sem lermos sob a ótica de suas reais narrativas que são duras. A beleza dos subúrbios está nesse olhar total que passa inclusive pelo que nos parece assustador e gostaríamos de esconder, assim como o Clóvis que pode esconder por trás de sua máscara o mais engraçado ou o mais temido dos seus vizinhos.

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