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Penha: sobre sua Pedra edificarei o meu lar

Pouca coisa é mais terrível no debate de formação e de cultura dos subúrbios que o apagamento do protagonismo negro na construção do solo.

É comum contarmos a história da paisagem suburbana vinculada ao imaginário das casas de porte neocoloniais, na formação dos trabalhadores fabris, em geral imigrantes europeus e na glória de grandes beneméritos que investiram num lugar.

Concordo que seja plausível contar a história da Zona da Leopoldina citando nomes como Capitão Baltazar, família Nunes ou Álvaro da Costa Mello, porém esta leitura esconde a força que riscou o chão sendo capaz de consolidar a peculiaridade e identidade que o abraça.

Era na festa da Penha que os citadinos espacializavam a região. Os escravizados ocupavam a base da pedra e ali construíam sua realidade, seus batuques, sambas, rodas de capoeira. A festa da Penha fora por séculos um fervo de expressão cultural com impacto geográfico. O mesmo porto que escoava a produção agrícola, trazia romeiros. A rua dos Romeiros demarca até hoje em traçado o encontro do mar (do porto maria angu quem sabe) até a Penha onde fora erguida a Igreja.

Nos importa lembrar sempre que: Penha não é Vila da Penha, ambas são fundadas por “penhas” distintas diga-se de passagem. Apesar disso, se encontram na avenida da arte. Noel, que era de outra Vila muito cantou sobre a Penha. Fico a pensar que anos mais tarde, a vila de Noel leva um dos mais imponentes sambas enredos do carnaval para a passarela Darcy Ribeiro. Seu compositor, Luís Carlos que era da Vila da Penha.  Alguma coisa realmente acontece na nossa vida quando a gente cruza a esquina da Rua dos Romeiros com a Brás de Pina, admiramos o Parque Shangai e sua jóia de carrossel, gostamos do comércio e vemos o povo nos corres do BRT, do alto Nossa Senhora da Penha nos observa quieta.  

Os pés que marcaram a rua dos Romeiros definiram o traçado urbano daquela região antes mesmo que qualquer administrador público o fizesse oficialmente. E quem haverá de contestar? Claro, esta não é uma história romântica, é a história crua de formação de uma região onde a repressão sempre foi forte.  Apesar de tudo, o chão da Leopoldina venceu e seu povo segue resistindo através dos seus modos de habitar.

A Penha, como qualquer recorte de Rio de Janeiro, representa em alguma escala esse emaranhado que compõe o solo brasileiro.  Aqui faz-se legal rememorar Espírito da Luz, o sambista anônimo de Rio Zona Norte que coloca o dedo na ferida do recorte geográfico etnocentrado no homem branco médio. Em tempos em que buscamos um novo marco civilizatório, é imprescindível que histórias como esta sejam contadas sem o enviesamento da branquitude. É, entre outros, a festa da Penha, o aquilombamento, a sociabilidade, dos negros que viabiliza o uso e a ocupação urbana da zona da Leopoldina e não o contrário. É através da força deste povo que esse território ganha valores culturais capazes de torná-lo especial, singular e aprazível.

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856 Um Adeus ao Poeta

Muitos filmes do Subúrbio em Transe são marcantes para mim, porém hoje falarei de um que como tantos é especial para a compreensão de diversos conceitos de vida, espaço, lugar, etc. 856 A CASA DO POETA.

Falo hoje como uma homenagem póstuma a partida do poeta J. Cardias, que cedeu e abriu sua casa ao Subúrbio em Transe para realização de tal obra. O eixo do filme está na remoção da casa do poeta para a passagem do BRT, durante as obras olímpicas. O poeta e sua casa eram um elo comum, ali onde o Taco se tornou a memória, reminiscência de um lugar que não volta mais.

J. Cardias foi uma dessas almas brilhantes e anônimas dos Subúrbios, alguém que fazia de sua vida e seu quintal a sua poesia, sua passagem por esta terra esteve imbricada neste lugar, um terreno e uma casa no bairro de Vila Kosmos. Casa esta que na disputa econômica da passagem do BRT, perdeu para o imenso shopping. O que J. Cardias nos permitiu, foi conhecer uma outra esfera das remoções dos mais pobres, este modelo de operação urbana que sempre volta com uma maquiagem de progresso. O poeta nos mostrou a remoção de um lar, de um lugar, o apagamento em vida de histórias, memórias e referências.

O poeta hoje partiu, assim como um dia foi extirpado de sua vida o seu lugar. Porém nos deixa a história de sua vida como exemplo, nos deixa suas poesias como presente e nos deixa sua resistência como legado. Esse é nosso país, onde aos mais pobres só resta luta pela sobrevivência. Todos que passamos pela pobreza, em um determinado grau enfrentamos as mais deveras frustrações que a desigualdade nos traz e tentamos seguir em frente. Dessas contradições de dor, frustração e necessidade de seguir vivendo que tiramos o suspiro de expressar, sem saber se nossas músicas serão ouvidas por mais pessoas além de nossos amigos, se nossa poesia será lida e entoada em todas as escolas de formação, sem se importar se nossa pintura vai ser exposta em um museu de grande notoriedade. Seguimos vivendo e produzindo, mesmo que quase anônimos porque esta produção está aí pra afastar o peso da desgraça que a desigualdade nos coloca.

Ao poeta, e porque não vizinho (afinal são bairros coligados) fica nossa admiração e aos familiares fica nossa condolência.

Aos amigos, simplesmente recomendo que assistam ao filme 856- A Casa do Poeta. Todos que já passaram por uma perda violenta de seu lar vão se reconhecer e aos que nunca passaram vão sentir.

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Casas de vó e um design do cotidiano

O campo da arquitetura de interiores e design de interiores possui uma dinâmica acentuada no que diz respeito a tendências, modas, novidades tecnológicas entre outros. Em geral, seus postulados acabam por definir o que é elegante e o que está cafona, o que é belo e o que é feio em um determinado recorte de tempo e espaço. O que chega para as massas consumidoras, vindo de revistas e magazines especializados, blogs, propagandas e até programas de TV cujo eixo central é a reforma de uma casa ou compartimento, reflete este universo sob o qual gira o campo de trabalho de reforma de interiores, e por sua vez alimenta a rede social de desejos.

Quem não quer ter a casa bonita e aconchegante? Precisamos porém, lembrar que, a beleza tem história, e seus signos são construídos no tempo. Para tanto, é necessário desconstruirmos o sentido de beleza condicionada ao exclusivo, a itens de difícil acesso que por sua vez, acabam sendo um instrumento de poder.

Um exemplo: As tão desejadas casinhas brancas de Mykonos tem sua estética determinada pela mesma técnica de pintura que hoje em dia marca uma enormidade de casas mais populares do Brasil, a caiação. Aquele mesmo azul e branco que remete uma memória de rua de avó, de vizinho pintando calçada ou tronco de árvore (não faça isso).

Quintal de vó – por: Rafael Jardim – link: https://flic.kr/p/BNUfU

Aconchego é um termo que se associa a acolhimento, a afeto. É possível termos cantos de afeto e ao mesmo tempo belos? Entendo que sim, se formos capazes de desnaturalizar a noção de belo relacionado a elementos externos ao afeto, ao acolhimento. É por este prisma que gostaria de apresentar as casas suburbanas como uma possibilidade real de beleza, a beleza de uma decoração construída historicamente pelas condições de possibilidades e pelos afetos inseridos no habitar.

Entre as inúmeras coisas que casas de subúrbios e populares nos ensinam, uma delas é que cada peça de decoração pode ser escolhida e concebida por fatores dos mais distintos que vão desde a utilidade até o humor. Dos populares filtros de barro, hoje considerado um dos mais eficientes e ecológicos filtros, até as fotos de família na estante ou parede, cada detalhe reflete um pouco de história ou causo da vida dos que habitam aquele lugar. A harmonia da casa está na organicidade da relação objeto, espaço e tempo, muito mais do que no arranjo de formas, paletas de cores, estilos, materiais.

Você pode ter um aparador mais modernoso comprado em uma loja especializada em móveis com design, e por em cima as fotos de formatura do filho em uma moldura adquirida na Praça 2. Talvez isso não pareça caber nos cânones de quem escreve o “bom design de interiores” mas isso cabe na história de sua família que teve naquele filho o primeiro membro de gerações a ter um curso superior. Filho este cuja avó poderia ter sido uma escravizada que seguiu sobrevivendo semianalfabeta. A foto é uma conquista e o aparador uma mesa expositiva. Não tem quadro de milhões do Romero Britto ou Mondrian que faria mais sentido apoiado naquele aparador do que aquela foto.

Da mesma forma, esta possibilidade não cabe numa estética pastiche ou forçada. O item aparece lá sem imposição regrada, pois a regra não é o item, mas a capacidade deste acolher, simbolizar, representar um valor que seja para os que ali estão. Um pé de amendoeira que cresceu contigo, um pedaço de memória solidificado num ferro velho, uma ferramenta que pertenceu ao seu avô, ainda que hoje já não pareça ser eficiente, a mesa comprada a duras custas naquela loja de móveis do bairro que praticamente nem existe mais. Tem história no quadro decorativo de autoria anônima vendida na loja de conveniências, uma história que não saberemos de uma ou algumas mãos que produziram a peça, talvez em linha industrial, talvez manufaturada, tem a história de trabalhadores comuns que vivem seu cotidiano e que nunca saberão que sua costura ou sua pintura estarão expostos em uma parede em Olaria.

Outra questão importante de posicionarmos é o humor. Por que não falar de peças de decoração que se propõem interessantes pelo lúdico e diversão? uma luminária feita com algum pedaço inusitado de automóvel, abridor em forma de pênis ou cadeira que servirá para fazer uma pegadinha com algum parente no dia do churrasco. Itens que se enquadram nesta busca parecem um conjunto de inutilidades. Estes itens por sua vez buscam uma relação de sociabilidade própria, com base na diversão, no fazer graça com o próximo, muitos destes itens tem vida efêmera, outros permanecerão sempre a postos para gerar o riso de uma visita de primeira viagem.

As casas tem destas coisas, um misto de casa com oficina, onde a mesa de estudos da criança é uma mesa velha de botequim que fica armada na varanda e que seus avós bebem a tarde contando causos à sombra da mangueira. Onde o pote de sorvete ou a lata de tinta servem como apoio para o labor do plantio das mudas que logo virarão belas árvores no quintal, onde pelo menos um dos quartos quase nunca fica arrumado e nada parece combinar com nada, mas no dia a dia tudo parece ter um sentido.

Assim como há uma espacialidade e arquitetura do cotidiano, podemos dizer que há um design do cotidiano já consolidado cujos elementos merecem e devem ser valorizados. Saber observar os itens, enxergar seu sentido histórico para aquele ambiente, e saber compor com ele muitas das vezes nos permitirá criar resultados tão belos quanto quaisquer desenhos de interiores produzidos usando peças de marcas tradicionais do ramo.

Casas de vó são casas repletas de afetos e reminiscências que habitam num cantinho especial em nossa mente, muitas das lembranças sequer refletem o que era a casa real, e muito do que amamos em nossas lembranças podem representar a peça mais efêmera que existia. Peças que talvez, no desejo de nossas avós, elas sonhavam em trocar todo dia por uma da moda mas não conseguiam porque não tinham dinheiro.

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Praças e Parques para os Subúrbios

É notório que o mapa verde da cidade do Rio espelha seu recorte territorial classista. Assim como ausência de outros elementos de qualidade urbana, também nos falta a paisagem verde, o espaço livre e os respiros. Em meio a isso, vemos algumas operações interessantes acontecerem como o anúncio do Parque Municipal Nise da Silveira.

É com bom grado que observo a instauração do parque em questão, a derrubada dos muros e a ressignificação deste espaço que foi um elemento altamente segregador da sociedade. Há de se considerar por sua vez que o pensamento paisagístico e urbanístico deste parque gera um desafio importante, pois não devemos apagar a história. A solução a meu ver passa pelo olhar sensível dos movimentos que já atuam no lugar, perceber e trazer para o parque a qualidade do trabalho do hotel da loucura e do espaço travessia pode ajudar a dar esta reposta. Há de se ter cautela de não adentrar na produção do espetáculo, da arquitetura do eventismo e buscar a arquitetura da profundidade experimental e sensitiva que este lugar traz. O urbanismo pode ser uma aula viva da história que não devemos repetir, há projetos bem sucedidos no mundo em relação a isso, como por exemplo o memorial aos judeus mortos na Europa, ou Aushwitz, entre muitos outros. Precisamos pensar e trabalhar o tom e o espírito do lugar.

O Parque Nise somado a revitalização da antiga Universidade Gama Filho poderá fomentar e muito a qualidade de vida e interesse por parte da sociedade no entorno destas regiões, poderá fazer parte destes bairros reviverem um pouco do que um dia representaram na história desta cidade. O que me espanta é tentar entender porque este movimento e pensamento não perpetua nas demais regiões. Por que o projeto para o Parque Realengo por exemplo é substituir o parque por moradia condominial, forma de residência que já se mostrou incongruente para estes territórios.

É nítido que o interesse pelo lugar vem de seus atrativos, e neste sentido um parque permitiria que o bairro como um todo se valorizasse e voltasse a ser interessante para a população, fomentando assim o próprio movimento especulativo da construção de habitação. Sim, o recorte que trago tem relação com o próprio modo de operar do capital. Um modo que se tornou problemático pelo fato de que ele não necessita mais da pessoa física compradora de imóveis para se erguer, visto que o sistema de financiamento coloca os bancos, fundos privados, relações com os poderes públicos como protagonistas.

É preciso entendermos que, verticalizar só faz sentido para o consumidor se há pouca terra e grande procura. Antes de chegarmos a real necessidade de verticalização de uma região, precisaríamos ver uma demanda latente de interesse de se morar nesta região por exemplo. Isto falando apenas sobre o que é movimentado via mercado, pois sabemos que o grande problema habitacional do Brasil só é possível de resolver com política pública decente e concreta para tal.

A incongruência nas ações e pensamentos acaba que revela a falta de sentido no planejamento desta cidade, ou a falta de força atuante. Não há um plano coordenado de implementação de áreas verdes livres em uma cidade que vê áreas verdes como lote com potencial construtivo e viabilidade de negócios. Esta foi a cabeça de formação de boa parte desta cidade, para quem os grandes planos terceirizaram o traçado aos donos das glebas e seus desenhistas de loteamento.

O resultado disso traz possibilidades bem interessantes e desafiadoras a qualquer urbanista, porém ficam no campo das teorias pois quando é pensado a prática sobre o território, a decisão política segue a velha cabeça dos antigos loteadores. Mudam-se os donos de bairro mas não muda a política. Com base nisso somos impelidos a seguir vivendo em bairros que tinham tudo para ser aprazíveis, arborizados, caminháveis, festivos, e que se tornam só amontoado de pessoas tentando na micro escala resolver os problemas macro que são de responsabilidade direta do gestor público.

Que o Parque Nise seja um sucesso e represente a possiblidade de sua política ser replicada em diversas escalas onde mais couber. Que junto a ele a prefeitura desengavete projetos importantes como o Quinze Minutos Verdes (potente pra arborizar boa parte da zona norte) e a revitalização dos Cinemas de Rua. Junto a isso o principal, tenha coragem de enfrentar o sistema de mercado das terras públicas e de assumir o projeto de moradia para os mais pobres como eixo central de revitalização urbana desta cidade para que consigamos transformá-la numa cidade melhor.

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DOS SUBÚRBIOS ROMANTIZADOS ONDE VIVEM OS BONS SELVAGENS

No Rio de Janeiro segregado e desigual, o suburbano é aquele que, através de um olhar tático sobre a vida tenta resistir as intempéries das escolhas políticas extremamente desiguais que comportam esta cidade. Se outrora os Subúrbios foram um intermeio entre o urbano e o rural, hoje podemos refletir sobre o mesmo termo ser um intermeio entre o a parte aceita da cidade e a favela.

Algo importante a dizer, quando falamos em favela, em subúrbio, em urbis, o que está em pauta não é a morfologia, a distância periferia-centro ou outros. O eixo principal é a forma de organizar e distribuir socialmente o povo e os recursos do território. Neste sentido podemos traçar por exemplo que: Favela, é o território onde o Estado considera legitimo matar, com anuência da opinião pública. Independente de seu traçado urbano é um território excluído dos mais básicos direitos civis como acesso a moradia, saneamento, transporte, direito, lazer, cultura.

Quando se fala em Subúrbios, o que temos é uma fusão das condições da parte aceita da cidade com a parte que a cidade não quer. Falamos sobre territórios de grande ambiguidade e discrepâncias intraurbanas. Uma distribuição de bairros de classe média a bairros mais pobres, alguns pequenos núcleos melhor estruturados comercialmente e imensos vazios urbanos negligenciados. A violência explícita que incide sobre as Favelas, não incide de mesma forma sobre os lugares que se denominam Subúrbios. Nestes a violência social se organiza de forma mais implícita, em geral pelo descaso. Ambos porém, enfrentam o viés da precariedade socioeconômica da vida como elo comum. São muitos aprofundamentos que já foram trazidos em alguns textos aqui e que continuaremos a trazer em mais textos logo a frente.

O recorte que queremos trazer neste momento consiste nos riscos da romantização. Entre as inúmeras formas de resistência social, a busca de um Subúrbio Ideal é uma delas. Esta busca não consiste apenas na reminiscência saudosista do uso da rua, das pipas, das cadeiras de quintal, ela também incide na própria construção de um sentido de identidade. Tentamos encontrar um sentido único e definido de Subúrbio, seja pela auto concepção na busca de um sentido unificado cultural que o defina, seja na busca de um perfil suburbano tipo, um padrão de referência que dê distinção ao personagem. A questão é: como unificar em torno de um sentido toda a complexidade de relações, muitas das vezes hiper contraditórias? Como traçar uma identidade suburbana que trate como iguais por exemplo os moradores da Tijuca, do Méier e do Cesarão?

As tentativas de identidade acabam por abarcar um certo nicho ou grupamento cultural com o qual consegue traçar uma linha que guie a narrativa e manter invisíveis um oceano de multiplicidades e de outras narrativas reais que coexistem com estes. O samba por exemplo, por toda sua capacidade de se capilarizar nos espaços dos territórios suburbanos apesar do status quo do projeto de nação vigente, consegue fazer um bom papel nesta costura. Porém o samba tem seu reconhecimento neste papel hoje, depois de décadas de perseguição policial e criminalização. Como pensar as casinhas coloniais, arquitetura referência de uma política de Estado que buscou nas inspirações neocoloniais (remetendo às cortes portuguesas) os signos de sua estética, pertencem ao mesmo corpo de símbolos identitários que o samba duramente perseguido por ser negro?

Um dos meios mais simples de tentar unificar consiste no não aprofundamento das questões, mantendo-as na superfície sem explorar ou dar voz aos contradições. Algo muito bem trabalhado por exemplo pelo marketing, onde até o slogan mais vazio de significado como por exemplo “coca cola é isso aí” vira uma máquina de sucesso.

Os riscos desse processo é que: sem aprofundamento, temos muita dificuldade de romper com a estrutura de segregação que conforma o território, além do imenso risco de criação e manutenção de estereótipos. E este é um ponto crucial. Para seguirmos em frente precisamos lembrar que, quem tem o poder de comando do território é quem define as políticas sobre ele.

Embora o Rio viva grandes avanços, em especial através da cultura onde os intelectuais orgânicos brotam dos subúrbios, favelas e baixadas de geração em geração, estes esbarram nos limites de quem detém o poder. E são estes donos do poder que tem a capacidade de captar as narrativas e escrever de forma mais massificada conforme lhes interessa. E é assim que por exemplo um problema do subúrbio ou favela que a elite não quer resolver se transforma em exemplos individuais de superação, ainda que o protagonista do exemplo só esteja tentando manter sua família minimamente viva.

O poder, como um ente representante da civilização, consegue por um braço manter o território sob controle e por outro braço criam a narrativa romantizada em torno dessa má qualidade. Não precisa, portanto, dar cabo de resolver as questões estruturais que garantam qualidade de vida a todos os munícipes. Ainda mais nefasto, conseguem transformar esta romantização da pobreza em mercadoria ou evento. Nesta manutenção da segregação, os suburbanos ou favelados são constantemente tratados (até pelos mais progressistas) como o Bom Selvagem de Rousseau. Talvez como um meio inconsciente de se eximir da responsabilidade de dar a este cidadão o direito a experimentar dos mesmos valores e hábitos que são destinados às partes mais burguesas da cidade pela estrutura material.

Uma frase do filósofo Wallace Lopez que sempre me diverte ao ouvir em suas palestras: “A Regina Casé gosta da favela, mas não mora na favela”. É importante termos esta consciência política e social. Romantizamos que o morador da Zona Sul não consegue apreciar o futebol suburbano, o nosso botequim o nosso futebol de domingo.

O importante, porém, é entendermos que qualquer morador dos territórios abastados pode dirigir seus automóveis até o futebol ou pegar as duas conduções necessárias para ir de uma Gávea a Olaria por exemplo, mas nem todo morador de Olaria que joga o futebol terá o dinheiro pra ir a um teatro na Gávea. Fora que, muitos moradores suburbanos sequer terão o direito de pisar numa praia sem serem taxados como marginais. Direito a cidade é também sobre isso, e não há romantismo que faça isso ser costurado com facilidade.

Assim a cidade do Rio de Janeiro segue se construindo pelos mesmos donos da bola (e do campo) embora muitas vezes mude a cor da embalagem. Cabe a nós buscar a fundo compreender como este mecanismo de controle se dá.

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O SUBURBANO VAI À PRAIA

Um tipo corriqueiro de notícia acontece em todas as proximidades de verão: a disputa da cidade pelo direito de uso e frequência da praia. Quando observamos no decorrer do tempo, percebemos que este movimento não constitui fatos puramente locais ou um casos isolados. O que se constrói mesmo é um organização simbólica da praia como um direito de todos os cidadãos. O Rio conhecido como cidade balneário, apesar de ter assassinado suas duas baías, define o controle social, todos os cidadãos podem utilizar da praia mediante uma certa forma de se ser e se portar, mas o principal é que ao invés da praia ser entendida como pertencente a todos os cidadãos ela é entendida como pertencente aos moradores do bairro.

O texto abaixo foi um fragmento da dissertação defendida: Rizomas Suburbanos: possíveis ressignificações do topônimo Subúrbio Carioca através dos afetos de 2015, mais precisamente nas páginas 67 a 69. Segue o fragmento na íntegra:


Quando falamos de Subúrbios Cariocas e disputas territoriais, percebemos que a ida à praia representa notório conflito na cidade. Fazemos uma ressalva de que problematizar e se aprofundar nas questões associadas ao uso e apropriação da praia exigiria outra pesquisa. O que demonstramos aqui é como as subjetividades podem ser traçadas a pela imprensa e que discursos são ditos com isso, ou ficam marcados através disso. Neste ponto, levantamos algumas notícias de jornais datadas entre os anos de 1969 e 1991 que nos remete a estes conflitos.

Algumas notícias de jornais:

Ida à praia nos Subúrbios é uma excursão e uma aventura.
A maioria dos suburbanos passa a semana de olho no boletim meteorológico,
planejando nos mínimos detalhes um banho de mar e uma praia no fim de
semana, junto com a mulher e os filhos. (…) Sete ou oito horas da manhã, eis
o suburbano desembarcado com mulher, filhos e mochila na praia de Ramos,
onde a condução para a volta é mais fácil ou nas outras na ilha do governador
após enfrentar uma fila maior nos terminais de coletivos (…). Atravessar a
praia de volta foi a mesma coisa da chegada(…)Na Avenida Brasil a confusão
era total. Motoristas de taxi brigando com seus colegas das Kombi(…). As filas
de ônibus intermináveis (…) Novos protestos, mais empurrões e recomeça a
luta por um lugar no coletivo(…)finalmente chega em casa(…)ele, com o corpo
ainda pegajoso da água suja do mar, as costas ardendo das queimaduras do
sol, resolve tomar uma cerveja no boteco da esquina e contar aos amigos as
suas extraordinárias aventuras na praia (O GLOBO 06 de janeiro de 1969).

Zona Norte terá em janeiro novos caminhos para a Barra – Na
primeira quinzena de janeiro estará bastante facilitado o acesso as praias da
Barra da Tijuca, principalmente para os moradores da Zona Norte e dos
Subúrbios(…) (O GLOBO, 11 de dezembro de 1972).

Depois da praia, na Barra, a difícil volta aos Subúrbios – (…) equipados
com pedaços de pau e até mesmo uma barra de ferro, inspetores e motoristas
realizavam a difícil tarefa de empurrar o maior número de banhistas para
dentro dos ônibus (…). As empresas só sabem reclamar, mas não colocam
mais ônibus para o subúrbio. O que acontece é isso aí: os banhistas ficam
irritados e terminam tumultuando o embarque e a viagem. Na entrada, perto
da descida do viaduto que liga a Barra ao túnel do Joá, mais de uma centena
de passageiros se aglomerava no ponto de parada, mas poucos conseguiam
embarcar(…) (O GLOBO 17 de novembro de 1975).

Praia da Urca: um sufoco em todo fim de semana: – Para moradores,
verdadeiro transtorno: Alguns moradores da Urca estão revoltados com o que
eles consideram uma verdadeira invasão suburbana que toma conta do bairro
durante os fins de semana. (…) Iasmim se queixa dos problemas causados
pelos suburbanos. – Eles fazem parte de um outro nível de pessoas com as
quais não queremos conviver (…). Os moradores da Urca são tradicionais e
não gostam de se misturar. Não sou contra os suburbanos, mas acho que
deveria haver um espaço delimitado para eles. (…) O número de suburbanos
é enorme e o clima muda completamente. A praia fica cheia de uma gente
esquisita, que deixa uma sujeira incrível. (…) a maioria dos moradores se sente
“roubada” no seu espaço (O GLOBO 03 de fevereiro de 1987).

A viagem dos surfistas do subúrbio – Moram perto da praia, mas estão
há uma hora e meia das areias da Zona Sul. Perto do mar e longe das ondas,
eles são os surfistas do subúrbio, que de ônibus ou de carona viajam mais de
20 quilômetros para chegar à Barra da Tijuca e esquecerem da poluída e calma
praia de Ramos. (…) (O GLOBO 17 de fevereiro de 1991).


Quando lemos os relatos das idas e vindas, não importando a data, aparecem questões similares que envolvem problemas de mobilidade urbana e estranhamentos sociais. O primeiro relato de ida à praia que encontramos cita as praias suburbanas balneáveis de Ramos e da Ilha do Governador (que na notícia de 1991 já se apresentam poluídas). Segundo as reportagens, a ida à praia é ao mesmo tempo “excursão”, “viagem” e “uma aventura suburbana” para os que vem dos Subúrbios, e uma “invasão suburbana” para os que são da Zona Sul. Isso não quer dizer que há um antagonismo direto, haja vista que uma notícia se refere à ida às praias suburbanas e outra à ida às praias da Zona Sul, sem contar no distanciamento temporal que as separa.


É interessante notar que o personagem principal – “o suburbano” – em todas as notícias é visto de um ponto de vista externo, reforçando a experiência do exótico. Aqui, o suburbano se assemelha muito ao estereótipo estampado na charge de 1916. O suburbano é este anônimo que leva a família para ficar o dia inteiro na praia, sofre para conseguir condução, mas que embora chegue em casa com “o corpo ainda pegajoso”, decide parar no botequim para contar suas desventuras.


As notícias de 1972 e 1975 se correlacionam tanto no tempo como no espaço, se por um lado, em 1972, era apresentado com vislumbre a abertura da Barra da Tijuca à Zona Norte e Subúrbios, a notícia de 1975 contradiz o resultado proposto ao demonstrar que os mesmos problemas de acesso da praia aos Subúrbios, relacionados à mobilidade urbana, ainda persistiam.


A questão da falta de estrutura urbana para suportar tal movimento já tradicional nos verões da cidade é sutilmente disfarçada nos jornais como um problema do usuário, no caso o suburbano. Com isso, subvertem-se as propostas populares, de forma que a falta de transporte para atender a demanda não seja vista como um problema para a parte “não suburbana” do conflito, mas sim como uma solução plausível.


Assim, cortar transporte público se tornaria um meio de garantir a “delimitação de um espaço próprio para eles”, que na condição de “gente esquisita”, são parte de “outro nível de pessoas” com as quais “não se quer viver”, e que estes, apesar de morarem “perto da praia” (Ramos e Ilha do Governador), precisam andar “uma hora e meia para atingir as areias da Zona Sul”.


Entendemos que há um peso pejorativo na questão do suburbano quando este tenta se deslocar do território. Ainda que a praia seja um espaço público direito de todo cidadão, o suburbano é tratado pela imprensa como aquele que não deveria estar lá. Isso se reflete em diversas desconfianças urbanas, onde projetos como o Piscinão de Ramos ou o Parque Madureira são interpretados como um meio de afastar o suburbano da praia e imobilizá-lo em seu território. Citamos aqui uma notícia49 recente sobre a inauguração da praia do Parque Madureira:

(…) se a natureza não facilitou a vida dos moradores da Zona Norte — e a ida à orla pode ficar mais complicada com a diminuição das linhas de ônibus para a Zona Sul —, a solução deve surgir como um presente do Dia das Crianças (O GLOBO, 16 de setembro de 2015).

Elucidamos que há um potencial processo de captura das significações da praia. Ao observarmos os dados da extensão de praias na cidade, temos que as praias que vão da Glória até Grumari possuem 39,53km, enquanto as praias municipais referentes à Zona Norte, Baía de Sepetiba e Ilha de Paquetá somariam 44,82km de extensão, conforme dados levantados no IPP. Podemos constatar, portanto, que seria um mito relacionar os Subúrbios Cariocas a lugares sem praia, assim como sem privilégios naturais.


Importante notar também como esta subjetividade colabora com a estratégia de uso não balneável das duas baías da cidade do Rio, Baía de Sepetiba e Baía de Guanabara.


O Rio de Janeiro tem o privilégio raro de ser uma cidade banhada por duas baías, cujas políticas historicamente as negaram. Ambas foram utilizadas como fundo, porta de serviço da cidade, hoje seguem poluídas, mesmo após Rio 92, Rio +20, Rio Olímpico, Rio Capital Mundial da Arquitetura. Assim, segue o descaso e a marca da segregação urbana na qual nos inserimos.

Praia de Sepetiba 1970 – arquivo nacional extraída de : https://saibahistoria.blogspot.com/2018/06/o-rio-comeca-em-sepetiba.html

imagem destaque, fonte: https://www.facebook.com/Coreto-de-Sepetiba-Rj-668294449888034

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AVENIDA BRASIL E CENTRO NO ALVO

O Rio de Janeiro tem vivido uma ebulição de movimentações especulativas que estão sendo lançadas separamente, mas que precisam ser lidas conjuntamente para melhor compreensão nossa. É notório que os atuais movimentos da prefeitura só terão resultado perceptível em um prazo longo de tempo. A prazo curto o principal movimento parece ser o realinhamento dos instrumentos da cidade para favorecer o setor imobiliário e de construção civil.

Citamos aqui apenas algumas propostas que nos permite pensar o que está sendo e o que será desta cidade daqui pra frente. Antes de mais nada, importante recortar que as condições de possibilidades desta escrita tem como base o que é publicado em jornais, magazines, círculos de debates entre outros.

Entre alguns movimentos:

  • Forte proposta de reaproximação do capital imobiliário no Centro da Cidade,
  • Aumento de potencial e interesse imobiliário para os bairros da Zona Norte próximos ao Centro e para os bairros da Zona Sul,
  • Venda de próprios públicos para a iniciativa privada, através de leilões,
  • Flexibilização de legislação e de parâmetros urbanísticos e de fiscalização,
  • Flexibilização de legislação de bens tombados e preservados.

Antes de adentrarmos, um elemento importante quando falamos das pressões da especulação, está na direção e sentido pra onde a cidade investe. O Rio de Janeiro pode ser lido (simplificadamente) por dois mega vetores de expansão, do seu centro caminhando para as praias oceânicas é definido o lugar da burguesia, das elites, das classes médias mais abastadas e do seu centro pro interior das baías (Guanabara e Sepetiba) é destinado aos moradores mais pobres, às indústrias e etc. Este desenho, que se iniciou ainda em tempos monárquicos, moldou o que Zuenir veio a chamar de cidade partida, e o que entendemos por cidade segregada.

Porém num dado momento, esta cidade que sempre teve seu Centro no seu recanto histórico de fundação, recebe com a proposta modernista de um levar sua centralidade para a Barra da Tijuca. Aqui, uma fronteira de disputas se abre e explica certos movimentos políticos contemporâneos. Pro carioca por exemplo, já é costumeiro ver o entra e sai de governos e ver que um ou outro território é a bola da vez dos grandes investimentos: Barra da Tijuca ou Região do Centro da Cidade.

Nos importa também colocar outra questão para o debate: A maioria das movimentos especulativos imobiliários não são feitos para atender as demandas materiais e diretas da cidade. Antes disso, eles se comportam como um dos atores que moldam os desejos que impulsionam esta demanda. Quem não conhece uma história de um parente que tinha terreno na Barra e vendeu pra comprar uma casa na baixada porque a Barra só tinha mato?

É importante a gente não naturalizar este tipo de funcionamento do movimento imobiliário, vai nos ajudar a encaixar muitas peças. Entre elas algumas perguntas a serem feitas:

  • Faz sentido para uma cidade que não tem grande demanda de ocupação investir em maior verticalização e ocupação?
  • Faz sentido o direcionamento habitacional ser prioritariamente para classe média em uma cidade onde o maior problema habitacional está na falta de política para os mais pobres?
  • Nosso real problema é a falta de pessoas ou a hiperconcentração dos recursos das terras?

Projetos como o Reviver Centro ou a Zona Franca Urbana da Avenida Brasil, quando juntados com a venda de próprios públicos, entre outros já citados, dão a iniciativa privada a liberdade de moldar a espacialidade da cidade sem que haja necessidade de grandes diálogos com os demais setores sociais que compõem. Citemos aqui as palavras do secretário de habitação ao jornal CNN:

“A gente oferece uma área de zona franca e o setor privado pode definir o que pode ser feito. A ideia é que a gente tenha uma região muito livre, mas sem deixar de lado a preocupação com o patrimônio”, disse o secretário municipal de Planejamento Urbano, Washington Fajardo”. ref: CNN(clique aqui)

Este pensamento redefine os modos de praticar o trabalho em urbanismo. Através dele assume-se o modus operandi protagonista do sistema privado de organizar, planejar e projetar o espaço. As ferramentas e operações propostas pela prefeitura promovem um caráter de gestão onde a lógica da iniciativa privada passa a ter um canal preferencial na construção do pensamento da cidade. Vale entender que isso não é novidade, o urbanismo sempre esteve nesta lógica: grandes intervenções em geral são frutos de grandes investidores privados. Se há novidade, ela passa pela readequação do instrumento estatal ao novo modelo de negócios.

Talvez uma diferença importante a cogitar está no fato de que, já faz tempo que a participação popular nas decisões sobre seu território fora minada, a bola da vez dos modelos atuais parece ser a participação estatal. Muito significativo de se perceber esse movimento a cada nova medida implementada, seja nacionalmente pelas propostas da reforma administrativa, seja no município pela redução do peso dos órgãos de controle, planejamento e fiscalização da prefeitura. Assim, mesmo que o novo Centro vingue, ele seguirá referenciado numa lógica financeira e econômica da Barra-tijucanização da vida que vigora nos dias atuais.

Há um ponto que é crucial. Não há debate real sobre o público, mesmo os grupamentos mais fortes de resistência que tendem a esta busca esbarram no desencaixe e imobilidade com relação ao povo. E este desencaixe atua de maneira firme. Se hoje um governo passa o trator pensado quase sem resistência ou contraproposta de amplo amparo popular, em muito se deve ao descaso ou falta de interesse ano a ano dos grupos organizados em lidar com as questões da cidade de forma mais ampliada.

É curioso ver como por exemplo, setores mais progressistas desta cidade deixaram parte significativa do território mais pobre ao relento de políticas clientelistas que ocorriam praticamente invisíveis da opinião pública. E foi neste setor de controle clientelista que a base simbólica do modelo de cidade atual foi legitimado. Foram anos de venda do sonho Barra da Tijuca, quem não lembra das famosas crises entre os Emergentes da Barra (termo usado pra distinguir esta classe média em ascensão da tradicional classe média zona sul)? Assim o que temos hoje? Uma parte importante de resistência organizada, muitas das vezes de base também na classe média que não consegue se aprofundar nos códigos das populações mais pobres pra entender quais são suas reais demandas, anseios, símbolos.

Se o sonho americano é a casa em um suburb, o sonho carioca a partir dos anos 70 é morar no condomínio próximo ao mar oceânico, passear no shopping, curtir a tardinha no bar famoso. Nisso o Centro também perde simbolicamente, afinal, as águas do Porto Maravilha são as mesmas da Praia de Ramos.

A volta ao Centro não mobiliza tanto as massas mais pobres da cidade, o que é uma tragédia pois se há um vetor de crescimento e renascimento para o Centro seria justamente romper com a lógica das distinções sociais e trazer os mais pobres para ele, o que permitiria uma dinamização econômica da cidade pela cidade, pelos seus cidadãos.

Este desencaixe causado pelas disputas entre barra e zona sul, entre movimentos predominantemente de classe média organizados progressistas e retrógrados torna os debates ainda mais difusos, pois parte vulnerável da cidade fica a mercê de qualquer loucura. Para um lado da cidade qualquer proposta pode rolar (vide um BRT) e fica fora da agenda de discussão e de defesa pelos setores organizados. Este debate fica enfraquecido pela ausência de um movimento de massa, o que torna toda discussão muito mais complexa.

Outra coisa pesa nestes projetos também é a escala em que as coisas acontecem e isso é histórico. Para haver interesse do setor privado, é preciso haver possibilidade de lucro, e isso muitas das vezes se dá no aumento da escala. Porém, os exemplos mostram que este tipo de operação demora décadas pra se consolidar e nem sempre dão o resultado prometido. A abertura da Avenida Presidente Vargas por exemplo, que ocasionou a expulsão dos mais pobres para as áreas suburbanas reflete bem isso, até hoje a avenida não teve seus vazios urbanos plenamente preenchidos, não se contemplou como tal, o Porto Maravilha (este mais recente) também não. Sinais de uma cidade que não tem esta demanda toda que se deseja e em nome da qual leiloará próprios públicos e flexibilizará legislação.

A enunciar uma propaganda:

A Avenida Brasil vai voltar. Uma das propostas do novo Plano Diretor da cidade é criar a Zona Franca Urbanística (ZFU) da Avenida Brasil. Isso significa que, numa faixa de 500 metros pra cada lado da avenida, não haverá parâmetros urbanísticos fixos e os pedidos de licença pra construir nos terrenos serão analisados caso a caso.

O objetivo dessa liberdade é facilitar projetos imobiliários nas proximidades da avenida, tanto residenciais quanto comerciais, pra reverter o esvaziamento e a degradação urbana que já duram pelo menos três décadas.

O que a prefeitura do Rio faz é dizer a sua população que parâmetros urbanísticos atrapalham. Também assume que o protagonista das soluções urbanas é a iniciativa privada do setor imobiliário apenas. Este mesmo setor que no primeiro governo Paes, a época do Porto Maravilha e do MCMV direcionou seu olhar para as glebas baratas da Zona Oeste, e alguns pólos industriais da Zona Norte, criando condomínios em quaisquer cantos sem os devidos cuidados urbanos, paisagísticos e arquitetônicos. Já falei um pouco em outros textos, como o Pilhagem Urbana do Rio.

O que fazer?

Bom, o primeiro passo é iniciar o longo processo de reencontro com a sociedade. Não basta apenas resistir se não formos capazes de construir uma proposta diferente. Proposta essa que passe por todas as frentes de debates, desde processos administrativos mais abertos que fujam do viés purista estatal x privado até o pensamento técnico científico mesmo, discutido in loco com o morador da cidade. Precisamos parar de falar da favela sem incluir na roda de conversa por exemplo.

Precisamos também dar viabilidade técnica para que propostas de pequena e média escala sejam interessantes. Não há mais espaço cabível na atual crise global para que todo o sistema econômico da construção civil gire em torno de megaempreendimentos. Assim como também é antiquado no mundo acreditar que as soluções sairão da prancheta de um ou dois grupos determinados. Precisamos retomar os esforços deste confronto e colocar a contradição da sociedade na mesa de discussão e de construção das propostas.

É importante discutirmos o dinheiro. De onde vem, pra onde vai, quanto custa e como se consegue. É inaceitável ver uma placa de: Esta obra custou X milhões sem que seja clareado os caminhos que são traçados para que estes milhões apareçam na conta de quem quer que seja.

Para que isso ocorra é preciso retomarmos a discussão do espaço, da paisagem, do ambiente urbano na escala comunitária. Atuar junto a espaços de âmbito comunitário promovendo educação urbana e aprendendo também a respeitar e entender as formas de espacializar do povo. Não conseguiremos dar uma resposta concreta que se contraponha ao sonho carioca da barratijucanização sem compreender as bases materiais que hoje legitimam esse desejo por exemplo.

O campo da arquitetura e urbanismo precisa ter um esforço militante de sair de sua própria alienação junto a cidade. Não podemos reduzir as discussões sobre os grupos e territórios mais pobres do Rio: Favelas, Subúrbios e Baixada pelo romantismo ou invisibilidade. Pra um lado da cidade qualquer coisa serve. Precisamos romper com o Urbanismo colonizador que lá atrás definiu pra que lado a cidade rica habitaria e em que lado a cidade pobre habitaria. E para tal precisamos modificar os círculos em que discutimos, sair do entorno dos mesmos fóruns e dialogar mais com ourtos fóruns. O urbanista no Rio pouco se aproxima dos professores de geografia, pouco se aproxima das associações de moradores ou de um simples caminhar de lazer num parque da AP5. É preciso de nós, enfrentar as contradições com tranquilidade e diálogo, não reduzindo as discussões.

O traçado da cidade tem ligação direta com os atores que conseguem, num dado espaço de tempo ter poder pra trazer e implementar suas propostas. Aos pobres em geral cabe a sobra tática, sobreviver e levar a vida a base de gambiarras pra responder a ausência e aos erros das escolhas políticas. Se perguntar ao povo que Avenida Brasil o povo quer, o dia a dia dela já mostra a insatisfação. Porém bastou um dia da mesma fechada e vimos potência que estamos deixando pra trás.

Av. Brasil vira área de Lazer – O GLOBO – https://oglobo.globo.com/rio/avenida-brasil-interditada-transformada-em-area-de-lazer-12254913

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