rio de janeiro

Dicas de leitura sobre a cidade: 400 contra 1 Uma História do Crime Organizado.

400 contra 1 é um livro que geral deveria ler.

O trabalho autobiográfico de william professor, ao contar a história do nascimento do chamado Comando Vermelho desmistifica de forma muito simples algumas distorções que vislumbramos no senso comum.

Destacando algumas:

  • A primeira delas, o tal encontro entre presos políticos e presos comuns passa meio periférico no livro, demonstrando que pra professor este não foi um eixo fundamental.

Notar isso é importante em um país onde até esta história perpassa trazendo no imaginário uma espécie de encontro de iluminados fazendo um trabalho de base.

O eixo que professor demonstra com força é o fato de que sob a lei que prendia os presos políticos, pessoas que não participavam de nenhuma organização também sofriam das penas mais severas, porém, quando veio a anistia, a materialidade do racismo e classismo brasileiro se via no fato de que os presos políticos sairam e os presos comuns ficaram (embora ambos assaltasse bancos por exemplo).

Entre outros, professor demonstra como a construção do chamado Comando nasce mais em função da estrutura de repressão do estado e da necessidade deste criar um inimigo do que de um desejo das lideranças. Desejo este que fica sempre claro: conseguir a liberdade.

O livro é um papo reto, retíssimo, destes que a gente não gosta de ter por aí e por conta disso seguimos navegando no meio do racismo que marginaliza criando dicotomias que não solucionam nada.

Ler esta obra faz pensar muito, até detalhes que parecem bobos como a baixa presença de Bezerra da Silva nos setlists das rodas de samba.

Reflito como a gente cria imaginários de uma pretensa pureza ideal para tentar combater a máquina de propaganda racista que vende uma parte significativa da sociedade como criminosa, membros de facção, etc. Esquecemos de lidar com o humano das pessoas e com a materialidade dos problemas.

Por enquanto só esses pitacos, o livro é muito maior que isso e por isso recomendo muito.

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brasil, política

Nos subúrbios a ditadura nunca acabou!

Ela segue firme nas rondas da PM, no carro da linguiça, nas mãos que tem cheiro de morte. Segue a cada em cada silenciamento. Tem ruas onde andar as 22h se torna arriscado, ou você será vítima ou será confundido com um possível meliante. Meliante, sinônimo de vagabundo, termo que até algum tempo atrás tipificava um crime que hoje já não é mais. Porém o termo está aí, e com ele a tipificação das pessoas. Nos subúrbios e favelas a gente tem que andar com documentos sempre em mãos, quiçá um comprovante de residência, pois aqui ela nunca acabou.

Aqui tem que se tomar cuidado! Nos tempos onde as classes média e abastada progressistas do país conseguiam construir uma resistência a 64, apanhavam, morriam, eram torturadas, nasciam também os cavalos corredores, os matadores e a milícia. Ali se estruturou a cultura da morte e da chacina, o alvo apenas mudou, foi para um canto da cidade mais silencioso e invisível e se tornou mais palatável. Quantos Herzogs perdemos nas guerras das favelas, ainda jovens e adolescentes? Quantos corpos seguem desaparecidos pelas ruas da baixada? famílias que nunca mais viram seus parentes, muitos deles crianças cujo crime naquela rua seria o lazer de uma festa de bacana.

Na Copa das Copas, os porões da ditadura que estavam operando no Haiti também operaram nas favelas, estavam exército, polícia, milícia e certas igrejas construindo o mais duro cerceamento de ir e vir garantindo aos brasileiros e estrangeiros que podiam pagar a fortuna de ingresso da copa tivessem o sossego e tranquilidade de não ver nossa miséria humana. A regulamentação da Garantia de Lei e Ordem em 2013 e as mais de 30 operações militares subsequentes no país entre 2013 e 2018 também foram importantes máquinas de fortalecimento desta casta. Só como adendo, o período de 2014 a 2016 vivemos os mais altos índices de pessoas desaparecidas por violência dos últimos anos, com média de mais de seis mil por ano, imensa maioria da Baixada Fluminense, Subúrbios e Favelas.

A nós que somos do Rio, lembramos dos caveirões que saiam a noite pra matar na favela e viraram atração turística na porta do Maraca. Os poderes escolheram perdoar sem perdoar, premiaram os generais e coronéis dando-lhes legitimidade. E hoje é o que temos, a presidência das milícias.

Às vezes me perguntam o por quê dos mais pobres não se assustarem tanto com a lógica dessa gente? Não vejo uma resposta tão clara, mas talvez o indício principal passe por aí: Para os mais pobres, a ditadura nunca acabou, governo a governo ela está aí, a cada dia com uma máscara diferente, vislumbrando como manter a rede de negócios, acharco e chacinas. A ditadura virou nosso cotidiano, e sobrevivemos nas brechas e com base nas leis dela. Não há primeira instância para quem é pobre, não há STF, esse universo é longínquo e pertencente a outra casta social, o pobre tem na frente a lei do cão e a prece pelo milagre.

Vamos precisar de muito peito e coragem pra enfrentar definitivamente isso tudo. Enfrentar com projeto político, reconstruir um sistema de segurança pública cuja função seja a proteção, investigação e prevenção, retirando dele este modus operandi enviesado cuja base é a suspeita individual com viés racista, a operação espalhafatosa pra sair na mídia e a corrupção que mantém tudo girando, ninguém chamaria Tom Jobim de meliante.

Sim, ela, a doce corrupção, a nota de cinquenta caminha pela cidade. Papel moeda que vira canudo pra PM cheirar pó depois de matar o garoto que lhe vendeu, vira oferta na igreja que é usada pra lavar dinheiro para o sistema vira o troco da carteira do filho do juíz que vai fumar seu baseado enquanto bate palma pro por do sol da cidade maravilhosa. Ali, onde o Rio é cidade maravilhosa, não passa o carro da linguiça, ninguém precisa provar que trabalha, ninguém precisa andar com nota fiscal da bicicleta no bolso, ali se é livre e ninguém morre assassinado porque acendeu um baseado na praia do arpoador, ao contrário vira hype.

É isso, quando os porões da ditadura sucumbiram de atacar a classe média que lutava por liberdade, os seus assassinos foram também anistiados e ganharam um espaço pra chamar de seu, pra ser os novos porões. Com base nos batalhões da Policia Militar, saíram a praticar todo o seu conceito e este novo porão chamamos de Subúrbios, de Favelas, de Baixada Fluminense. É ali, onde os mais pobres moram, não tem voz e nem liberdade de ser quem são, como são e andarem por onde quiserem, sem viver de perto o cotidiano da violência endêmica deste Estado.

1964 nunca acabou e isso precisamos ter na mente e no coração da gente.

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