O trabalho autobiográfico de william professor, ao contar a história do nascimento do chamado Comando Vermelho desmistifica de forma muito simples algumas distorções que vislumbramos no senso comum.
Destacando algumas:
A primeira delas, o tal encontro entre presos políticos e presos comuns passa meio periférico no livro, demonstrando que pra professor este não foi um eixo fundamental.
Notar isso é importante em um país onde até esta história perpassa trazendo no imaginário uma espécie de encontro de iluminados fazendo um trabalho de base.
O eixo que professor demonstra com força é o fato de que sob a lei que prendia os presos políticos, pessoas que não participavam de nenhuma organização também sofriam das penas mais severas, porém, quando veio a anistia, a materialidade do racismo e classismo brasileiro se via no fato de que os presos políticos sairam e os presos comuns ficaram (embora ambos assaltasse bancos por exemplo).
Entre outros, professor demonstra como a construção do chamado Comando nasce mais em função da estrutura de repressão do estado e da necessidade deste criar um inimigo do que de um desejo das lideranças. Desejo este que fica sempre claro: conseguir a liberdade.
O livro é um papo reto, retíssimo, destes que a gente não gosta de ter por aí e por conta disso seguimos navegando no meio do racismo que marginaliza criando dicotomias que não solucionam nada.
Ler esta obra faz pensar muito, até detalhes que parecem bobos como a baixa presença de Bezerra da Silva nos setlists das rodas de samba.
Reflito como a gente cria imaginários de uma pretensa pureza ideal para tentar combater a máquina de propaganda racista que vende uma parte significativa da sociedade como criminosa, membros de facção, etc. Esquecemos de lidar com o humano das pessoas e com a materialidade dos problemas.
Por enquanto só esses pitacos, o livro é muito maior que isso e por isso recomendo muito.
Pouca coisa é mais terrível no debate de formação e de cultura dos subúrbios que o apagamento do protagonismo negro na construção do solo.
É comum contarmos a história da paisagem suburbana vinculada ao imaginário das casas de porte neocoloniais, na formação dos trabalhadores fabris, em geral imigrantes europeus e na glória de grandes beneméritos que investiram num lugar.
Concordo que seja plausível contar a história da Zona da Leopoldina citando nomes como Capitão Baltazar, família Nunes ou Álvaro da Costa Mello, porém esta leitura esconde a força que riscou o chão sendo capaz de consolidar a peculiaridade e identidade que o abraça.
Era na festa da Penha que os citadinos espacializavam a região. Os escravizados ocupavam a base da pedra e ali construíam sua realidade, seus batuques, sambas, rodas de capoeira. A festa da Penha fora por séculos um fervo de expressão cultural com impacto geográfico. O mesmo porto que escoava a produção agrícola, trazia romeiros. A rua dos Romeiros demarca até hoje em traçado o encontro do mar (do porto maria angu quem sabe) até a Penha onde fora erguida a Igreja.
Nos importa lembrar sempre que: Penha não é Vila da Penha, ambas são fundadas por “penhas” distintas diga-se de passagem. Apesar disso, se encontram na avenida da arte. Noel, que era de outra Vila muito cantou sobre a Penha. Fico a pensar que anos mais tarde, a vila de Noel leva um dos mais imponentes sambas enredos do carnaval para a passarela Darcy Ribeiro. Seu compositor, Luís Carlos que era da Vila da Penha. Alguma coisa realmente acontece na nossa vida quando a gente cruza a esquina da Rua dos Romeiros com a Brás de Pina, admiramos o Parque Shangai e sua jóia de carrossel, gostamos do comércio e vemos o povo nos corres do BRT, do alto Nossa Senhora da Penha nos observa quieta.
Os pés que marcaram a rua dos Romeiros definiram o traçado urbano daquela região antes mesmo que qualquer administrador público o fizesse oficialmente. E quem haverá de contestar? Claro, esta não é uma história romântica, é a história crua de formação de uma região onde a repressão sempre foi forte. Apesar de tudo, o chão da Leopoldina venceu e seu povo segue resistindo através dos seus modos de habitar.
A Penha, como qualquer recorte de Rio de Janeiro, representa em alguma escala esse emaranhado que compõe o solo brasileiro. Aqui faz-se legal rememorar Espírito da Luz, o sambista anônimo de Rio Zona Norte que coloca o dedo na ferida do recorte geográfico etnocentrado no homem branco médio. Em tempos em que buscamos um novo marco civilizatório, é imprescindível que histórias como esta sejam contadas sem o enviesamento da branquitude. É, entre outros, a festa da Penha, o aquilombamento, a sociabilidade, dos negros que viabiliza o uso e a ocupação urbana da zona da Leopoldina e não o contrário. É através da força deste povo que esse território ganha valores culturais capazes de torná-lo especial, singular e aprazível.
Nossa terra tem palmeiras onde canta o sabiá, já dizia o poeta, embora a sabiá que mais ouvi cantar nasceu fruto de uma jaqueira em Oswaldo Cruz bem pertinho de Madureira. São muitas as árvores da nossa vida, assim como são os sabiás que por aí avoam, bem como muitas são nossas bandeiras. Cresci sob a sombra de uma amendoeira que infelizmente a civilização torpe assassinou, toco tambor sob a benção da Tamarineira que um cacique um dia plantou.
Minha bandeira não é vermelha ou verde e amarela, esse país do medo cansou. Minha bandeira é verde e amarela, mas também é vermelha sangue, mas também é azul e branca, verde-branco e grená, branco e vermelho era a bandeira de meu avô e trago também no coração, como bom neto de Bangu que sou. Não me interessa mais a política dos corpos tristes e amedrontados, o Brasil é maior que isso e sinto muito os amantes do passado, o Brasil não cabe em uma bandeira só. Sâo tantas as bandeiras que me dariam esperança em um mundo novo, que seria impossível fazer cabê-las aqui.
Quero ver caminhando comigo aqueles que estão felizes por ganhar uma copa latino americana flamulando suas bandeiras preto e vermelhas, quero ver pular de alegria os cruz maltinos por saírem do sufoco, e que brilhe a estrela solitária assim como terá de brilhar a estrela vermelha em favor do povo. Aos que estão com medo, aos que estão com raiva, não me levem a mal, mas não dá pra enjaular o universo de dores e alegrias que somos dentro de suas caixas pré-montadas que já não respondem a realidade da humanidade.
O Brasil ameríndio, negro, favelado, macumbeiro nunca coube nos comerciais de margarina, nunca tomou o café da manhã da Xuxa e nunca teve a cozinha da Ana Maria Braga. Somos uma espécie de Macunaímas subversivos. Foi esse Brasil que ficou sem vacina a tempo, que morreu e que deu um não ao projeto de poder de vocês. Esse Brasil que são muitos Brasis emaranhados não escolheu o Lula por que o idolatra, mas o escolheu principalmente pra dizer um não a vocês. Esse projeto de poder antiquado, que funciona na base do encarceramento, do terror, de enquadrar e enjaular. O povo sofrido já sabe como lidar com o bico do fuzil (infelizmente) e não vai cair nesse terror barato, podem armar o alçapão a vontade.
E nessa terra que, além de Palmeiras, tem Corinthians que abre os caminhos na paulada, vocês ainda tem muito o que aprender com os povos originários, a começar que a vida dos sabiás não cabem numa gaiola. Não fomos feitos para ficarmos nas suas jaulas, mas para voar livres.
A principio, sigo a plantar as sementes nessa tentativa de construir um universo tão plural e diverso onde posso ver livres e felizes todos sabiás, curiós e uirapurus. Aos que se acham os representantes da verdade, da pátria e de Deus, aos que se acham capazes de reduzir o Brasil a duas cores, sinto muito desapontá-los porém, são infinitas as cores que compõem os sonhos do nosso País.
E no mundo onde livre cantarão os sabiás, deixo um recado da sabiá que encantou os filhos da jaqueira:
“Não temo quebrantos Porque eu sou guerreira Dentro do samba eu nasci Me criei, me converti E ninguém vai tombar a minha bandeira”.
Assim como Assis não seria o mesmo sem Washington e Zico não seria o mesmo sem Júnior em campo, o debate da band mostrou o óbvio: faltou à esquerda neste ano o contrapeso e contraponto nos debates. O que parece ter transparecido: independente do que apareceu, as forças a direita já venceram esta eleição.
A esquerda se enterrou em um projeto único, embora tenhamos candidatos que se puseram na disputa, estes não passarão de 1%, pois a concentração está no projeto de poder do PT. Um projeto cuja contradição habita no fato de que: materialmente é a continuidade do sistema neo-liberal, cuja representação do acordo está no vice: Geraldo Alckimin, porém simbolicamente tem que se apresentar com a tinta de esquerda.
O debate mostrou a fragilidade da unidade personalista, enquanto a direita mostra seus mil tons e dá a oportunidade de seus eleitores escolherem o melhor gestor do pacote, a esquerda perdeu inclusive a possibilidade de dialogar sobre os temas mais delicados às pautas. Não tivemos um candidato falando de reformas estruturantes, de fim de teto de gastos, de recuperação dos direitos trabalhistas perdidos. Lula fala de dar MEI para entregadores quando deveria falar de dar emprego que os tire da precaridade.
Ciro, apresenta de forma muito tímida seu projeto de nação, fala em escolas sem falar no projeto de educação verdadeiramente emancipador, porém remete sempre ao povo que leia o seu projeto (o que sabemos que não acontecerá rs). Tebet tenta se posicionar como uma novidade, embora venha carregada pelo MDB, esta máquina de fisiologismo. Soraia e Dávilla parecem perdidos. Ainda assim, estes nomes: dávilla, tebet, soraia, pautaram e deram o tom do debate ao amplificar muitas vertentes de uma lógica liberal contemporânea de pensamento.
Ciro tentou debater o modelo de nação que temos, questionando o sistema político do Brasil que basicamente conforma o terreno para a corrupção como ferramenta de governabilidade. Cita o desenvolvimentismo, mas não explica bem o que significa e que diferenças tem do modelo atual e se foca muito na pauta de resolver a vida dos endividados, o que é super possível de fazer, porém é uma ação pontual dentro da proposta ampla de governo que nós esperamos conhecer.
Lula estrategicamente se focou em falar das benesses de seu governo, porém tropeçou quanto ao questionamento sobre o que será um Lula 2023? Ao invés de apresentar a proposta de saída retoma o básico: eu fiz isso eu fiz aquilo. Para o povo em geral, em especial quem acompanha debate, isso pouco significa pois todos sabemos que 2023 não é 2003, tem uma geração inteira na vida adulta que sequer viu FHC ser presidente.
A ausência de outras vozes de esquerda foi notória demais para o próprio campo que agora está se questionando. Este é o projeto, a escolha equivocada de movimentos e partidos de esquerda que decidiram por se apequenar nesta eleição e que agora reclamam inclusive do crescimento do neoestalinismo, que se apresenta como alternativa crítica pelo viés da esquerda. Claro que foi tático da emissora não convidar Leonardo Péricles (UP), Vera Lúcia (PSTU) e Sofia Manzano (PCB), sabemos que é de praxe. Isso levou o debate a transparecer, para o povão, como sendo: o Partido Novo ocupando o lugar que até então era do PSOL, levando assim a discussão para o espectro mais liberalizante possível.
O debate mostrou o interesse de três projetos de Brasil: um projeto neo-liberal que mantém o sistema pelo viés financeiro com base no agronegócio e outras comodities, isso é muito representado pelo Lula/Alckimin, Bolsonaro, e talvez Tebet, um sistema neo-desenvolvimentista que Ciro trouxe mas não explicou bem e um sistema utópico super liberal trazido por Soraia e Dávilla.
Ainda em tempo, curioso notar como o projeto de Dávilla e Soraia é antiquado, nem os capitalistas defendem isso a vera pois já sabem que é muito mais interessante ter o aporte robusto do Estado a seu favor e gerenciar apenas os lucros do negócio. Essa é uma das premissas de existência das parcerias PPP e é justamente para isso que o agro faz bancada e lava dinheiro com eventos de entretenimento.
Vangloriar o agronegócio como força motriz do Brasil é um equívoco, pois ele só está neste patamar porque somos um país sem desenvolvimento industrial nacional desde que o Plano Real foi aplicado. O povo passa fome enquanto produz alimento industrializado por aí. A gente (quem pode pagar) bebe soro químico embalado como leite a preços exorbitantes e entramos num ciclo vicioso que só está trazendo mais desemprego e fome.
O que vivenciamos foi um debate muito despolitizado, cujos temas mais necessários ao povo não foram sequer tocados, um show de horrores de pessoas que estão distanciadas demais do povo mais pobre. O Brasil seguirá na incógnita e isso nos obriga a trabalhar mais firme em pró de saídas que não estão tão dadas assim.
Algumas palavras caem no senso comum e vão ganhando formas diversas enquanto se perdem no seu conceito. Assim aconteceu com sustentabilidade, assim está acontecendo com o empreender.
Em nome de um sistema de marketing que pretende transformar o ato de empreender em um padrão natural, quase uma essência humana, vamos criando máscaras e distorções históricas tremendas. Uma delas é dar o ar científico do termo ismo a palavra, e outra delas é investigar o ato de empreender como um ato a-histórico, atemporal, como se o conceito existisse desde nossos primórdios.
Primeiro precisamos entender que um conceito é cunhado e consolidado quando um certo conjunto de possibilidades e significações corroboram com isso. Em sociedades como as primitivas, ou mesmo na era do bronze, o conceito de empreendedor não cabia. O que falamos aqui é algo muito similar com as tentativas forçadas de vincular Jesus ou os indígenas ao comunismo marxista. Ainda que não haja uma definição unanime sobre o conceito de empreendedorismo, alguns dados são bem-vistos, entre eles a capacidade potencial de inovar em algo assumindo os riscos.
A problemática da discussão do empreendedorismo se dá quando analisamos processos complexos de inovação apenas a partir dos indivíduos que centralizam a gestão ou liderança do processo sem assumir que estes processos são uma construção de corpos coletivos (direta ou indiretamente). A busca de competitividade e inovação constante fez com que aumentasse o grau de investimento do sistema em empreender o que materialmente é muito bom. O ponto crítico está justamente em um simbólico que implementa em torno de algo amplo e social a um homem. Brecht em seu famoso poema: “Perguntas de um trabalhador que lê” já alertava a esta crítica, questões como:
“No dia em que a Muralha da China ficou pronta,
Para onde foram os pedreiros?
A grande Roma está cheia de arcos-do-triunfo:
Quem os erigiu? Quem eram aqueles que foram vencidos pelos césares?”
Nenhuma sociedade, nenhuma aventura humana na terra, se reduz aos seus ícones e heróis. Os próprios estudos sobre inovação contemporânea já compreendem a importância capilar de todos aqueles que estão vinculados nas redes envolvidas na construção dos seus caminhos. O problema é que, refletir esta materialidade dos fatos rompe com um simbólico fundamental de sustentação do sistema que também é antiquado, a construção do incone-herói.
O que o sistema faz no lugar disso é construir uma série de novas significações para empreendedor, entre elas quaisquer enfrentamentos na vida que envolvam risco e autossuperação vira automaticamente ação empreendedora. Com isso tentam igualar romanticamente o camelô que vende bala numa luta hercúlea pela sobrevivência com um Elon Musk, cuja herança o permite investir nas mais diversas experimentações globais e interplanetárias.
Casos como o dos camelôs não são empreendedorismo, são luta pela sobrevivência mesmo em um país que não promove o mínimo de direitos civis dignos pra seus cidadãos. Por sua vez o empreendedorismo como construção social pode nascer de um pacto social importante: investimentos pesados do Estado em P&D, valorização dos polos de desenvolvimento tecnológico e de desenvolvimento social, fortalecimento da educação de base garantindo o olhar mais realista e humanista sobre o Brasil e estrutura social digna para que o povo tenha tempo de estudar e se desenvolver.
É necessário que entendamos de vez que os grandes e famosos empreendedores do mundo não foram pessoas avulsas, mas sim pessoas que conseguiram articular uma gama de sorte e possibilidades em torno de si e que seus grandes empreendimentos nunca teriam saído sem a lapidação e suor de muita gente, dos faxineiros das empresas até o presidente da república de alguns países. No fim, o empreendedorismo mesmo é consequência de uma ação coletiva de sociedade disfarçada de uma ação individual refletida em uma liderança.
A disputa pelo simbólico não vai construir sozinha a saída da crise nacional.
Ontem caminhando na rua tive o prazer de conhecer uma música gospel cuja letra dizia:
“Não toque nos profetas do senhor E nem fale mal do seu ministério Pois quem toca nos ungidos do senhor Pode acabar no cemitério”
Por um lado, as forças à esquerda se encastelaram e se auto fagocitar nos mesmos espaços de militância que quase não tem representação e vivem sendo disputadas a ferro e fogo por burocratas. Por outro, as forças mais conservadoras avançaram bruscamente por anos e anos em estruturas capilares de comunicação e contato popular (rádios, TVs, jornais, centros cívicos e de sociabilidade, etc).
Na disputa simbólica nacional, a hegemonia sempre esteve com os lados mais conservadores. A visão que o povo tem de comunismo por exemplo foi bem definida nas escolas militares da ditadura e disseminada pelos mais diversos meios de comunicação de massa. Esta mesma visão muitas vezes pauta inclusive os movimentos de esquerda (liberais e comunistas) que assumem para si um conjunto de signos identitários comunistas estereotipados pelas forças conservadoras, e assumem de forma acrítica quaisquer narrativas.
As forças mais conservadoras avançaram bruscamente por anos e anos em estruturas capilares de comunicação e contato popular (rádios, TVs, jornais, centros cívicos e de sociabilidade etc.). Por um lado, as forças à esquerda se encastelaram e se auto fagocitam nos mesmos espaços de militância que quase não tem mais representação embora vivam sendo disputadas a ferro e fogo por burocratas.
Lembremos, o Brasil é um país sem um projeto nacional de educação de base e que nunca construiu uma lógica de pensamento livre e crítico a partir das massas populares. Somos um dos países da América Latina que menos lê e que menos entende de sua própria história.
Armas no Brasil não estão conectadas a um desejo de direito civil como nos EUA, a guerras internacionais ou a morte, elas se conectam com o senso comum pelo sentido de proteção e defesa individual e familiar. Seja a proteção que se crê pela institucionalidade das forças militares, seja no sentido de defesa pessoal ou até mesmo conquista de status e poder. O militarismo (em todas as suas vertentes, inclusive a paramilitar) é uma das principais portas de seguridade social e ascensão dos mais pobres.
Por estas brechas, o conservadorismo construiu sua narrativa em meio a degradação de todos os sistemas públicos existentes. Hospitais não funcionam, educação precarizada, previdência social derretida, mas o militarismo segue firme e forte. Nossa base material frágil garante aos grupamentos armados este tipo de poder. É preciso uma compreensão extra! As discussões antiviolência não funcionam tão bem no Brasil contemporâneo, por ser um país onde parte gigante do seu povo relativiza a violência. Esta já nos é familiar.
A eleição do Bolsonaro foi um banho de água fria em quem acreditava que o povo poderia escolher livros ao invés de armas. Como fazer tal escolha em um país onde o prazer da leitura é escasso e vemos fuzis em cada esquina? Por mais que pareça insano, percebemos que boa parte dos brasileiros não se importa com o aumento do armamentismo. Precisamos entender que tal discurso é dizer que devemos escolher entre aquilo que a maioria nunca teve um acesso decente com algo que lhes é tão familiar que já não temem.
O Deus cristão é também o Deus da espada, que levará ao cemitério quem tocar no ungido dele. Esta narrativa ganha espaço no povo que vive a materialidade de um país onde a violência se tornou naturalizada no dia a dia. Não será fugindo da realidade que vamos fazer renascer o Brasil, precisamos sim elevar nossa discussão de projeto de nação para além disso. Vocês têm armas? Ok, nós não teremos medo de encarar vocês de peito aberto e na mão! Vamos com a cara e a coragem reconstruir tudo que der para reconstruir do chão deste povo.
Ano a ano a esquerda taxou tudo e todos que eram sua oposição como fascistas, ao mesmo tempo em que governava lado a lado com o ovo da serpente (Crivelas e IURDs, Pastor Everaldo, os muitos acordos e composições com a escória política nas cidades de interior). Fazemos campanha estereotipada de fascismo neste país onde sequer estudamos a fundo o que foi o momento histórico e o levante das forças fascio. Soma-se a isso o fato de que o Brasil é um país onde os micros fascismos habitam emaranhados na sociedade.
Se ilude quem acredita que as eleições vão resolver o país, que simplesmente recuperar o controle do governo vai resolver. Se ilude também quem crê que o maniqueísmo sobre o armamentismo vai angariar votos. Esta eleição está fadada ao risco da incredulidade, perdeu-se o bonde da história quando a indignação popular que começava a crescer nas ruas diante do desarranjo na lida com a pandemia foi silenciado em nome de um: Tiraremos Bolsonaro nas urnas. Agora as urnas chegaram e as ruas estão vazias. Vivemos o volume morto da despolitização e da confusão entre fazer marketing e fazer política.
Entendam de uma vez: o grosso do povo brasileiro não gosta de políticos frágeis, o povo espera alguém que tenha peito e coragem de enfrentar. Este marketing o Bolsonaro faz, por mais que ele seja um covarde e um incapaz de gerir qualquer coisa (como bem se mostrou seu mandato) se vende como o ex-militar capacitado de acabar com a corrupção do centrão. Porém sua demagogia caiu por terra, a corrupção está aí e nada foi construído neste país além dela.
Aqui cabe aquele chavão máximo de Maquiavel: ser amado ou ser temido? E a resposta que acredito para tal: Sejamos amados por quem tiver a fim de nos amar, estes que venham conosco, mas acima de tudo sejamos temidos pelo bolsonarismo!
O bolsonarismo e o conservadorismo tolera em parte os indivíduos que compõem as minorias, mas temem a capacidade destas se organizarem. Não importa se gostamos ou não do Lula, do PT, do PSDB, de quem quer que seja, o que nos importa é: Ninguém mais vai poder se sentir corajoso de meter o bico do fuzil apontado para quaisquer de nós que sejam, porque a organização a partir de agora tem que ser temida. O medo que a classe média começa a sentir nesta eleição já é vivido por qualquer um que milita e faz campanha nos subúrbios, baixadas, periferias deste país a muito tempo.
A discussão não é mais a identidade, a representação ou o levante do protagonismo por dentro do sistema. A pauta principal é resolver as arestas materiais que trazem mais sofrimento, dificuldade de emprego e renda, dificuldade de se manter estudando, discrepâncias salariais, entre outros.
O povo tem fome, não tem mais tempo de ter medo, então fica o recado aos que militam, mas nunca passaram fome: não tenhamos medo! Nada gera mais pânico ao bolsonarismo (em todas as suas faces) do que um povo que encara esta escória miliciana. O bolsonarismo já está pronto para ir as ruas questionar as urnas, e as massas de esquerda farão o que? Seguirão encasteladas em seus aparelhos na esperança e fiança de um judiciário que só tem legitimidade para meia dúzia da classe média e da elite?
O que o Brasil precisa mesmo é aposentar estes modelos de disputa e se debruçar na construção social do seu projeto de país inserido no mundo. Precisamos redesenhar o nosso campo produtivo, fomentar um projeto factível de reestruturação da infraestrutura material: indústrias, logísticas, manejo ambiental, habitação de massa repensada pelo direito a morar e não pela financeirização, criar mecanismos de combate à fome e miséria e remontar a educação de base para que me 12 anos tenhamos uma nova geração forte e capaz de produzir uma sociedade muito melhor.
Segue sendo nossa maior vergonha termos um sistema educacional onde: aos mais pobres é destinado a degradação do sistema de educação pública, a classe média em geral seguirá as escolas privadas de ensino também frágil, mas com lógica de clube e festa para se manterem atraentes para os estudantes e meia dúzia de escolas de ponta onde serão formados os filhos da elite desta nação. Tentamos debater democracia sem sequer sairmos completamente da visão de mundo aristocrática. Uma educação emancipadora e revolucionária seria aquela capaz de dar ao povo as ferramentas de construção e sistematização de saberes científicos e de gerar crítica concreta.
Este Brasil só é possível de construir a partir da ampla organização popular, algo que perdure para além das disputas dadas. Muitos ungidos do Senhor estão neste momento passando fome e sofrendo das mesmas violências cotidianas que os LGBTQ+ ou os povos originários, enquanto o Bolsonaro e seus asseclas comem picanha a R$1799,00 mil e setecentos e noventa e nove reais o quilo, nada diferente do que Cabral estava consumindo na cadeia.
Não nos iludamos! Não há saída possível sem passarmos pela retomada das ruas, independente do que as ruas construam, e por um trabalho árduo que caminhe para além dos processos eleitorais, isso é o que impõe o medo e o respeito diante dos poderes dados. O povo em sua incógnita de descrença que segue tentando encontrar os caminhos para a melhora material de suas vidas não é mais um alienado ou um agente passivo ao que está dado.
Uma das grandes contradições das relações entre espaço e sociedade se dá na busca do condomínio fechado. Nós urbanistas estudamos e entendemos os riscos e problemas que este modelo traz nas cidades, porém sempre fica a questão: Por que estes modelos seguem vingando?
Neste momento vamos pensar sobre alguns pontos: segurança, igualdade e qualidade de vida.
O que a maioria dos condomínios vende é uma vida com lazer “urbano” controlado, destinado a um determinado grupamento de moradores selecionados pela capacidade de compra destes imóveis. A vida vendida nas propagandas garante isso, a segurança e conforto é produto da capacidade de gestão de iguais sob um mesmo território murado. A vida fora dos muros é o risco, o medo do outro, do diferente, do imigrante.
O que o condomínio fechado nos mostra com isso é que a relação de qualidade de vida que nos sistemas do capital neoliberal é destinada a alguns poucos têm preço. Para seguirmos em frente vamos observar um pouco o que o modelo neoliberal nos traz:
O modelo se sustenta por um pequeno grupo de mega ricos cuja flexibilidade e poder econômico os permite escapar das muitas relações nacionais de controle social e econômico, temos um grupamento razoável de trabalhadores que se inserem numa lógica de classe média: a quem é destinada a alegria a partir de pequenos consumos, e a quem incide boa parte das tributações que pagam o estado. Por fim, temos uma massa de pobres, cujo poder de consumo é mínimo ou zero, cujo controle se dá pela manutenção do mínimo do mínimo para a sobrevivência destes. Resumindo, o sistema constrói um Estado realmente desigual e incapaz de resolver seus problemas.
É jogado a sociedade a resolução dos problemas por si mesmo, cada um que se resolva. O sistema se torna capaz de flexibilizar suas soluções justamente porque ele aliena a lógica de oferta e demanda devem caminhar juntas na solução de problemas vitais. Não precisamos construir habitação para toda a população, vamos construir X habitações e cada pessoa com seu recurso que tente adquirir sua moradia.
Quaisquer modelos de governança que visem políticas sociais, seja a social-democracia seja o próprio comunismo é logo traçado como ofensa ao direito individual do cidadão enfrentar por si só o seu caminho.
Agora voltando a contradição: o modelo de condominialização vinga porque ele promove exatamente alguns dos conceitos da justiça social ou do comunismo. Em um microcosmo ele produz espaços de qualidade de vida a um grupamento de cidadãos com igualdade de renda, identidade, conceito de vida. Garante-se o controle de invasores ao ecossistema e por sua vez a segurança.
O que o condomínio nos ensina de interessante é que a segurança está muito relacionada com a capacidade de uma vida igualitária, esta é a busca daqueles que se encantam com a proposta da vida condominial. Ironicamente um dos desejos de conforto humano se consolida naquilo que o pensamento da esquerda propõe, da Deleuziana até o mais ortodoxo dos modelos, a igualdade.
O condomínio se transforma nesta válvula de escape social, a busca de uma vida comum que de comunitária não tem nada. Se torna um espaço estéril, onde a igualdade entre os que coabitam é construída pelas ferramentas de controle dos grandes investidores (que modelam o negócio).
Assim, o condomínio e a condominialização da vida tentam trazer uma falsa solução aos problemas que ninguém parece ter interesse de resolver, como por exemplo, recuperar as relações de vida comum e vida pública da sociedade garantindo o direito de igualdade de tratamento a todos os cidadãos.
Na noite da última segunda feira, no auditório da UNISUAM em Bonsucesso ocorreu uma Audiência Pública Territorial da Comissão Especial do Plano Diretor. Como eixo principal destacou-se o que estava sendo pensado para a Zona da Leopoldina, mais especificamente a região que abarca de Manguinhos até a Penha.
O triste destaque se deve a uma apresentação extremamente focada em um tipo de modelagem de uso do solo para verticalização imobiliária disfarçada de adensamento. Entre os principais equívocos que foram apontados, destaco algumas questões fundamentais que nos são extremamente caras ao lugar e à qualidade de vida de todos os cidadãos, não foram sequer pinceladas pelo poder público, questões como mobilidade, áreas livres, arborização, entre outros.
É um erro absurdo acreditar que aumento de gabarito por si só significa reestruturar bairros. Ficou claro nas falas da população a saturação e reais problemas que esta, que reside, sofre. Chega a ser um pensamento antiurbano acreditar que se resolve a cidade apenas aumentando oferta construtiva. O gabarito legal permitido na região hoje já é alto e ainda assim nunca fora alcançado.
Para entendermos o motivo, precisamos assumir a cidade real: A região debatida sofreu um imenso esvaziamento por inúmeros processos mal resolvidos de planejamento, desde a escolha do território como território industrial num dado momento histórico até o processo de desindustrialização da cidade e o crescimento da especulação imobiliária para a Barra da Tijuca e Jacarepaguá, entre mil outros fatores, promoveu o esvaziamento local. Ao longo de décadas houveram discrepâncias absurdas de investimento público na cidade, vendeu-se por anos que os subúrbios, em especial a Zona Norte e Oeste AP3 e AP5, são lugares ruins para se morar. Ser cool no Rio, desde a década de 50 é morar na Zona Sul, curtir a cultura da Zona Sul, parar nos pólos gastronômicos da Zona Sul.
Nos últimos anos, além de obras extremamente equivocadas e de qualidade duvidosa, complementou a degradação destes espaços que perderam pólos de cultura e lazer, árvores, praças entre outros.
Temos de ter em mente que, o que atrai população, tensiona a demanda por moradia e por sua vez atrai o mercado imobiliário, é a garantia de um lugar infraestruturado e com interesse de lazer-cultura-educação-segurança. É uma anacronia a comparação da Zona da Leopoldina com a região da Zona Sul na qualidade de afirmar que: a verticalização que torna a Zona Sul agradável.
O interesse da sociedade em morar na Zona Sul foi construído a partir de suas belezas naturais, paisagísticas, valores de cultura e sociedade e de sua qualidade urbana e de um bombardeio de propaganda simbólica que vendeu a Zona Sul como o lugar certo de ser carioca. Esta por sua vez tensionou o Estado a infraestruturar a região, urbanizando-a, precisou deste conjunto de operações para que o processo de verticalização acontecesse, de maneira a atender a forte demanda por moradia na região. Mesmo em Copacabana, um dos bairros mais verticais e densos da cidade, só perdeu sua última casa baixa da orla no ano de 2013. É importante demarcar estas informações para a compreensão de que a verticalização só se completou na orla de Copacabanda a partir deste ano citado.
Pergunto eu:
O que levaria quaisquer pessoas a morar em um apartamento de 50m² de frente para a Avenida Brasil? O que levaria estas pessoas a não comprar seu imóvel em outro lugar da cidade, visto que os preços tenderiam a ser competitivos ou até mais atrativos?
Não digo com isso que devemos ficar presos num bucolismo de tempos pretéritos, mas é preciso compreender o básico do espaço real e vivido: sem qualidade urbana e paisagística, sem pertencimento, não se gera interesse e nem desejo de morar. E sem um interesse massivo, não se viabiliza moradia verticalizada com qualidade. Isso é tão basal que o próprio mercado imobiliário compreende como parte de suas estratégias. Assim, é totalmente falso qualquer afirmação de que basta construir um prédio que as pessoas irão naturalmente desejar morar.
Dito isto, não podemos tratar de um Plano Diretor da cidade que simplesmente deixe livre um mega potencial construtivo a beira da avenida brasil sem nenhum parâmetro de organização. Isso é dar uma carta branca a sociedade construir qualquer coisa de forma não planejada. Resumindo o plano nega o próprio objeto de planejar.
O que fica claro é: para gerar interesse do mercado imobiliário na Zona da Leopoldina, desmonta completamente quaisquer requisitos urbanísticos e cria instrumentos de tábula-rasa que favoreça o lucro a partir da quantidade (potencial de construir no terreno), Esta ferramenta pode ser utilizada como moeda de troca para que o mesmo mercado invista com mais qualidade nas áreas Centro-Sul e Barra da Tijuca. Fica claro mais uma vez que o alvo das discussões do Plano Diretor para a região da Leopoldina não é a população, mas a possibilidade de gerar algum interesse para os grandes investidores de terras.
Entre os elementos extremamente arriscados, segue no plano a possibilidade de remembramento de pequenos lotes (que representam a maior parte dos lotes desta região), para a construção de um grande lote. A princípio isso parece algo inocente, mas é muito perigoso em uma região onde a maioria dos lotes não possuem escritura definida corretamente, casas que possuem acréscimo, famílias que construíram no quintal ou no segundo andar da casa dos pais e não fizeram desmembramento. Estamos falando de um território cujos lotes próprios são vulneráveis também.
A materialidade destes projetos onde só o que pesa é imprimir potencial construtivo e liberar aumento de gabarito em vazios urbanos dos bairros gera projetos como já vimos por aí, cito ruas como os empreendimento da Rua Degas, ou o novo lançamento da CURY com entrada direto pela Linha Amarela, sem qualquer relação com entorno ou com impactos diversos do empreendimento no local. O poder público fala em construção de condomínios no mesmo lugar onde o povo claramente pediu saneamento, escolas, ônibus, creches, praças e parques. Precisamos discutir mobilidade decente, áreas de lazer, pontos de cultura, planejamento de arborização, espaços de educação, saúde e cultura. São estes elementos que podem fazer surgir o interesse popular por estes bairros. É sobre isso que o Plano Diretor deve se debruçar, ao invés de repetir erros de um Rio de Janeiro já cansado destes processos imobiliários.
A solução para o BROP ou para a própria Av. Brasil passa primeiramente pelo resgate das relações comunitárias vigentes locais, pela valorização das qualidades e signos importantes dos bairros e pela geração de interesse popular nos mesmos. Bonsucesso é interessante quando o clube de Bonsucesso se torna interessante, quando o mercado é barato, quando as praças estão aptas a vivência e sociabilidade, quando os bares estão com movimento a noite. A Penha será ótimo a medida em que os pólos de lazer tirem partido da paisagem da Igreja, ou o parque shangai seja patrimonializado pelo que representa para aquela região. Assim também é Ramos ou Olaria. Ninguém que mora na URCA seria louco de esconder o cara de cão, ninguém que mora na Zona Sul seria louco de transformar suas praias e calçadões num aterro sanitário, destronar a escultura de Drummond.
Ao construir e consolidar os projetos de estruturação dos bairros, garantir a revitalização deles, valorizar a cultura local, suas construções e associações de bairro e território, compreender as muitas nuances rua a rua, saberemos realmente como lidar com bairros. É preciso termos essa compreensão, estamos falando de Bairros, com história, memória, simbolismos mil e infraestrutura e não de terra a avulsa. Quem nesta cidade ainda fala de terra avulsa disfarçado de falar de cidade em geral é especulador formal, grileiro ou miliciano.
As grandes glebas abandonadas da Avenida Brasil precisariam, antes de receber um empreendimento de qualquer porte imobiliário, de investimentos urbanos e urbanísticos. Isso é um mínimo dos mínimos. Por que não pensar o Centro Expandido como se pensa os PEUs ou como se pensou o Reviver Centro? Por que a prefeitura precisa de uma tal Zona Franca Urbana que não diz exatamente a que veio? Estas são questões que precisam ser respondidas com muita urgência, antes que nada sobre para se chamar de bairro nesta cidade do Rio de Janeiro.
Qualquer pessoa que vê o resultado da Transcarioca, do Porto Maravilha, das obras abandonadas do entorno do Maracanã, enxerga exatamente do que se trata o modus operandi desta prefeitura para a cidade. Esta é a cidade real que nos restou.
Em 2022, o ano em que celebramos os 30 anos da Eco 92 precisamos de mais avanços nas construções. A real é que, a pandemia que ainda nos assola colocou na cara do gol as limitações da organização do capital: a incapacidade de colocar a vida na centralidade das políticas.
Estima-se que a falta de políticas sérias por parte de diversos formuladores mundo a fora pode ter afetado os principais índices de levantamento. Atualmente já se pondera que o número total de vítimas mundo a fora seja três vezes maior do que o declarado, muito devido a subnotificação e falta de testes.
No Brasil, o Bolsonarismo representou a narrativa máxima da organização deste capital, declarações como “A economia não pode parar” não foi um eco solitário e estranho em meio a crise global, possivelmente tenha sido apenas a versão mais autêntica e radical do pensamento e modelo vigente. É preciso termos isso em mente: A economia do mundo como conhecemos não parou ou se reformulou. Ela seguiu os rumos e nadou na busca de manter firme as suas estratégias de acumulo de poder e capital.
Enquanto o Brasil passava a boiada quase sem enfrentamento popular, pois por uma escolha política da militância organizada o Bolsonarismo seria disputado nas urnas, países em conflito se mantinham reféns de suas guerras. Os sistemas de pesquisa de vacinas e fármacos alinhados aos modelos de pesquisa do capital, onde se disputam os direitos autorais e de copyright, mesmo tendo sido mais rápidos que outrora, se travavam em burocracias e disputas das mais diversas. Enquanto nosso povo morria o agronegócio (base estratégica da economia brasileira hoje devido a equivocada política) fazia fortunas em giro de dinheiro com artistas de sertanejo. Mesmo mobilizações globais em defesa da pandemia se tornavam ferramentas de captação de recursos para determinados grupos. O mercado de luxo seguiu faturando enquanto populações sofriam. A morte inclusive é um meio de se fazer dinheiro, se assim não fosse não teríamos tantas guerras. Ironicamente um Trump cai com seu utraconservadorismo ao mesmo tempo em que se orgulha de não ter iniciado novas guerras. Graças ao mundo que não parou mas fingiu parar, hoje tanto a economia quanto a vida definham.
Faltou ao mundo a coragem de parar a roda da fortuna, reorganizar o sentido da vida social e recomeçar. O resultado é que o projeto ruiu, não resistiu, primeiro, começou a cair o radicalismo da direita e agora seguem balançando quaisquer representações que tentem manter este modelo sem discutir com seriedade uma saída global a crise instituída.
Em meio a esta crise o povo segue em desespero diante da falta de perspectiva, nada mais assusta ou acalma. Sem projetos globais convincentes, sem rompermos com o modelo presente de exploração de pessoas, de vidas em geral e de recursos, não vamos avançar. Seguiremos cavando os torpes caminhos de nossa extinção em massa. Neste processo que inclusive expõe a própria injustiça global, visto que nem na extinção encontramos os caminhos de igualdade: os mais pobres seguirão sendo eliminados primeiro.
A desesperança e o atual niilismo se dá devido termos uma sociedade que busca ansiosamente uma saída disso tudo e não encontra. Muitos deram um voto de confiança a uma fuga pelo ultraconservadorismo e ainda estão perdidas ao perceber que este também é parte do mesmo stablishment que tanto criticam e nos faz mal. Construir um mundo novo ainda é possível, porém cada vez mais difícil pois ele não será traçado por dentro das estruturas que estão consolidadas, mas também não creio que sobrevivam apenas por fora destas estruturas.
Precisamos disputar a base do globo, construir novas ferramentas e formas de pensar coletivamente e criar as barreiras necessárias para não sermos sufocados. Essa é a encruzilhada atual, não será simples ou agradável passar por ela, pode significar um enfrentamento em que não vejamos a linha final, um corre em que estaremos solitários quase como loucos isolados escrevendo nas pilastras do viaduto sobre mensagens de amor.
Mas será no corre simples, nas conversas de rua, nas atividades comunitárias que organizamos, nos papos de organização e na organização propriamente dita. a saída vai exigir uma linha singela de construção permanente de novas redes de sociabilidade. O duro é que para dar certo precisaremos nós mesmos, nós por nós criar as válvulas de escape da economia, fugindo de todas as teias que podem nos aprisionar a um determinado poder limitante dentro do sistema.
Em meio a inúmeros alertas da ONU e enfrentando uma pandemia que cobrou da humanidade a capacidade de parar o giro do sistema para se recompor, o sistema global permaneceu tentando remendar a si mesmo. Passando-se dois anos de pandemia, a escolha dos grandes operadores dos modos de produção foi por manter a roda da economia como conhecemos em pleno movimento, apesar de todas as limitações e embaçamentos que podem causar catástrofes ainda maiores. Assumimos esta escolha política, mesmo distante das inúmeras disputas.
Estamos, enquanto espécie, diante de um flanco. Enfrentamos uma necessidade urgente de ruptura do paradigma atual que, diferente dos processos de mudança do iluminismo ou do modernismo, não passa por signos de busca de evolução da humanidade, mas sim pela própria necessidade de sobrevivência dela. Assim, nos resta a certeza de que não temos mais tempo de experimentações sem encarar os riscos de para onde a trajetória econômica está nos levando. Diante disso fica a pergunta: Como repactuar a economia global diante do dilema ambiental? Essa pergunta precisa de uma resposta aplicada em larga escala urgentemente.
Dentro deste dilema trago um recorte para reflexão: Os atuais avanços do mundo industrial já nos permitem gerar novos modelos que podem colaborar com a busca deste novo paradigma. O discurso vigente do sistema capitalista, que centra a produção em lucro, competitividade e propriedade do conhecimento (patentes, copyright, P&D) como fomentadores de uma sociedade mais eficiente já não cabe mais. Foi justamente dentro deste raciocínio que chegamos aonde estamos. Tentamos sobreviver em um planeta que transforma vida em recurso e tudo que toda em produto de consumo.
Por outro lado, o sistema vigente em modelos de produção socialista produzira um nicho de relações burocráticas que tornaram a indústria menos potente em inovação (argumento que é questionável), hoje, com o atual nível de conexão de redes, não precisamos mais nos ater a tal debate. Vamos recortar o que é comum a ambos, a busca da produção e o uso estratégico do modelo industrial para garantir o controle social. Por sua vez, não é mais necessária uma megaprodução de excedentes para otimizar lucros, ou um grande sistema de exploração de força de trabalho braçal para garantir eficiência (como defendiam/defendem alguns).
Podemos criar redes de automação capazes de inferir na produção dentro de melhor racionalidade de demanda, interesse, uso, capacidade produtiva e capacidade destrutiva. Podemos integrar todos os instrumentos de produção e logística globais em redes de possibilidades capazes de monitorar em tempo real a necessidade de produção, reduzir custos, reduzir desperdícios e excedentes que viram lixo. Com o Big DATA podemos tornar os ecossistemas de produção industrial mais flexíveis e ajustados a demandas globais.
Um exemplo alegórico: O aumento expressivo do consumo de um determinado remédio destinado a uma doença contagiosa em uma cidade pode dar indícios de um possível surto, apontar para a rede industrial a necessidade de se produzir mais deste remédio para esta cidade ou deslocar de um lugar com pouca necessidade deste remédio. Esta indústria pode dar indícios a rede de indústrias de motores sobre a necessidade de produzir certo tipo de transporte para garantir a logística de mobilidade para aquela região e por aí vai. Uma reação em cadeia que ligue ponta a ponta: consumo e produção conforme diagnóstico em tempo real das problemáticas e potencialidades de atendimento das demandas.
Cada vez mais, o ato de implementar uma indústria envolve também pensar nas relações urbanas, paisagísticas, naturais de onde esta se insere. O modus operandi de um planeta rateado pelos setores econômicos que garantem a eterna repetição dos mesmos ciclos de centro-periferia global. Da mesma forma devemos pensar se ainda se torna necessário investir energia na produção constante de veículos automotores individuais por exemplo.
Precisamos rever urgentemente a relação do lucro e propriedade relacionados a produção industrial. Não cabe mais, em um mundo complexo, pensar o grande campo industrial como um sistema de proprietários de capital e relações de poder e disputas privadas. Não cabe mais a produção seguir com base em excedentes de necessidade duvidosa para girar uma economia desvinculada dos impactos ambientais e das reais demandas da sociedade. Com um olhar atento sobre a produção globalizada e internacionalizada seríamos capazes de economizar tempo e material, baratear a produção a partir da logística de produtos sob demanda, ao invés de repetir o padrão de barateamento gerado por uma megaprodução de excedentes.
Podemos portanto, reinserir a produção dentro de um sistema ampliado de organização social. Atualmente podemos gerir complexos industriais através de bigDATA de forma a garantir maior eficiência nos processos. Porém, precisamos de um ciclo ampliado constante de gestão política e governança, que englobe sociedade civil, sindicatos, ambientes comunitários, parlamento, entre outros.
É preciso pensar uma estrutura social que viabilize a redução da jornada de trabalho sem a redução dos salários. Precisamos considerar as ferramentas que o capital apresenta, podemos por exemplo redefinir a produção do lucro do capital financeiro, cujo principal alvo é a geração de renda e crédito através da confiança. O lucro segue como conhecemos, sendo produzido pela capacidade produtiva dos trabalhadores e pelas máquinas de exploração da vida, porém se compõe via capital financeiro, de forma indireta a isso. É preciso repactuar a renda, pois a realidade é que teremos uma massa de desempregados ou de subempregados muito maior do que a que existe hoje. Esta massa por sua vez é parte significativa na produção da mais valia, ao mesmo tempo em que é potencial consumidor.
O sistema de lucros deve ser reorganizado e costurado. Ao invés da produção de bilionários, a industrialização global, automatizada e gerida de forma racional pode produzir um sistema universal de redução e mitigação da miséria. Para tal, precisamos reinvestir o lucro gerado em políticas de renovação e proteção social e ambiental. O valor excedente produzido precisa entrar em um ciclo de benefícios locais, ser reinvestido prioritariamente na busca da equidade social em todas as esferas de governança. Visamos com isso reduzir os danos causados e prevenir que novos danos ocorram. Com o investimento global dos lucros industriais organizados, podemos estruturar bancos de apoio e distribuição da renda, programar e fomentar políticas de pesquisa e desenvolvimento que se fundamentem prioritariamente na constante ação em rede.
Pesquisa e desenvolvimento é um trabalho global e colaborativo. É um equívoco seguirmos crendo ainda nos modelos míticos da grande genialidade. Precisamos Consolidar as redes de possibilidades dos encontros. Quanto mais integrados estamos, melhor é a eficiência e racionalidade de ações que planejamos.
O que deve se tornar predominante e paradigmático acima do lucro, é o impacto de preservação e recuperação ambiental do entorno, seja natural ou construído. Neste sentido, a partilha pode ser peça importante para organizar o novo modelo de operação industrial, focando na cooperação internacional, na racionalização da logística de transporte dos bens de consumo e de transporte das matérias primas muito mais que na concorrência. O planeta não suporta mais nossa organização social modernista, essa é a triste realidade, precisamos urgentemente mudar as rodas de funcionamento do planeta, o tempo é pouco.
O mundo é propício a receber qualquer pequeno impacto no ecossistema e vai nos cobrar. Já demos alguns passos culturalmente. Aumenta o número de cidadãos, para quem, a existência passa pela experiência do mundo e não mais pelo controle de posses. Precisamos reforçar estes modelos se quisermos seguir vivendo neste planeta.