Arquitetura e Urbanismo, cultura, rio de janeiro, Subúrbios

Penha: sobre sua Pedra edificarei o meu lar

Pouca coisa é mais terrível no debate de formação e de cultura dos subúrbios que o apagamento do protagonismo negro na construção do solo.

É comum contarmos a história da paisagem suburbana vinculada ao imaginário das casas de porte neocoloniais, na formação dos trabalhadores fabris, em geral imigrantes europeus e na glória de grandes beneméritos que investiram num lugar.

Concordo que seja plausível contar a história da Zona da Leopoldina citando nomes como Capitão Baltazar, família Nunes ou Álvaro da Costa Mello, porém esta leitura esconde a força que riscou o chão sendo capaz de consolidar a peculiaridade e identidade que o abraça.

Era na festa da Penha que os citadinos espacializavam a região. Os escravizados ocupavam a base da pedra e ali construíam sua realidade, seus batuques, sambas, rodas de capoeira. A festa da Penha fora por séculos um fervo de expressão cultural com impacto geográfico. O mesmo porto que escoava a produção agrícola, trazia romeiros. A rua dos Romeiros demarca até hoje em traçado o encontro do mar (do porto maria angu quem sabe) até a Penha onde fora erguida a Igreja.

Nos importa lembrar sempre que: Penha não é Vila da Penha, ambas são fundadas por “penhas” distintas diga-se de passagem. Apesar disso, se encontram na avenida da arte. Noel, que era de outra Vila muito cantou sobre a Penha. Fico a pensar que anos mais tarde, a vila de Noel leva um dos mais imponentes sambas enredos do carnaval para a passarela Darcy Ribeiro. Seu compositor, Luís Carlos que era da Vila da Penha.  Alguma coisa realmente acontece na nossa vida quando a gente cruza a esquina da Rua dos Romeiros com a Brás de Pina, admiramos o Parque Shangai e sua jóia de carrossel, gostamos do comércio e vemos o povo nos corres do BRT, do alto Nossa Senhora da Penha nos observa quieta.  

Os pés que marcaram a rua dos Romeiros definiram o traçado urbano daquela região antes mesmo que qualquer administrador público o fizesse oficialmente. E quem haverá de contestar? Claro, esta não é uma história romântica, é a história crua de formação de uma região onde a repressão sempre foi forte.  Apesar de tudo, o chão da Leopoldina venceu e seu povo segue resistindo através dos seus modos de habitar.

A Penha, como qualquer recorte de Rio de Janeiro, representa em alguma escala esse emaranhado que compõe o solo brasileiro.  Aqui faz-se legal rememorar Espírito da Luz, o sambista anônimo de Rio Zona Norte que coloca o dedo na ferida do recorte geográfico etnocentrado no homem branco médio. Em tempos em que buscamos um novo marco civilizatório, é imprescindível que histórias como esta sejam contadas sem o enviesamento da branquitude. É, entre outros, a festa da Penha, o aquilombamento, a sociabilidade, dos negros que viabiliza o uso e a ocupação urbana da zona da Leopoldina e não o contrário. É através da força deste povo que esse território ganha valores culturais capazes de torná-lo especial, singular e aprazível.

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O CARNAVAL QUE NÃO ACONTECEU, MAS ACONTECEU

Primeiramente, este texto é um produto de um pensamento coletivo, muitas vozes ecoaram e conversaram e isso convergiu nestas pontuações que aqui trago.

Acima de tudo, nunca defendi a realização da festividade em meio a pandemia, considerei uma precipitação o anúncio lá atrás ainda em 2021, pois o mesmo colocou milhares de trabalhadores do carnaval em linha de ação em um momento em que a pandemia ainda não se mostrava tão controlada assim. Segundo: pior que a realização do carnaval como conhecíamos foi a solução proposta, um falso cancelamento. Porém, apesar de não estar na agenda, ele esteve e aconteceu.

Foram inúmeras as festas privativas, lotadas onde todos sabemos que os controles de mitigação da covid são inexistentes, ou como diz a famosa alcunha, para inglês ver. Além do caráter de festas privadas, foram experimentados modelos de negócios novos a partir das festividades, entre eles destacam-se além dos blocos privados, os minidesfiles das escolas de samba. O carnaval de rua não deixou de ocorrer, ele aconteceu por linhas de fuga e não mais pelos blocos tradicionais que já há alguns carnavais estavam no sistema de fomento do megaevento.

Nos subúrbios, as turmas de Clóvis resistiram. Suas saídas repletas de foguetórios foram notadas por inúmeros moradores que sequer sabiam da existência deste tipo de evento. Bares lotados, ruas cheias, um povo que simplesmente não consegue mais conviver sem o encontro presencial e que não suportou mais um ano sem evento. O que o feriado mostrou foi: a festa em si não morrerá, independente do quanto se tente estragá-la para encaixar em um modelo comercial, porém ela pode, e muito, se modificar a ponto de perder seus elementos de fundamento.

O teste de comercialização da festa teve como principal resultado a meu ver uma fragmentação do sentido coletivo dos eventos, os minidesfiles que obrigaram escolas a eleger aproximadamente uns 80 componentes de uma gama de 2500 foliões é passível de criar uma realidade paralela nas escolas, uma quantidade ínfima que de longe não mostra o poder de formação de uma agremiação e que, como dizia o Império Serrano, segue escondendo gente bamba. As escolas com certeza saíram as mais prejudicadas, pois, além de retornarem ao trabalho árduo mais cedo (vide os barracões, ensaios de comunidade, ensaios de bateria, etc) ainda seguirão trabalhando em meio a pandemia até o dia do desfile oficial em abril.

O sambódromo se tornou um dos únicos espaços apagados e vazios da cidade neste fim de semana, o que já demonstra o peso simbólico da tragédia, diferente do ano anterior, onde apesar de não ter o carnaval a apoteose brilhou em cores celebrando todas as escolas de samba que por ela passa. Este mesmo sambódromo que um dia foi uma arquitetura pensada para a celebração do povo e que já vem sofrendo com o desmonte de sentido demarcado pelos ingressos caríssimos e camarotes que preferem fazer uma festa rave em meio aos desfiles (sim, é possível pagar caro para ir ao sambódromo e não ouvir samba). A mercantilização das escolas seguiu mais um passo na escala, e será preciso muita resistência popular para que o próprio povo, que é fundamento da escola não seja excluído de vez da festa.

Quanto ao carnaval de blocos, creio que um grande impasse se deu por conta de uma tradicional máquina de controle, o fomento cultural. Uma vez que um sistema autônomo é capturado pelo sistema de fomento cultural e passa a viver disso ano a ano para realizar sua atividade, a ausência deste fomento não significa o retorno ao modelo autônomo anterior. Creio que nisso muitos blocos se perderam, sem carnaval de rua e sem fomento, muitos partiram para a festa privada como possibilidade de fazer alguma renda, outros nada fizeram.

As ruas, porém, são um espaço político do carnaval, lembremos que mesmo a apoteose é uma rua da cidade. E rua vazia e carnaval não combinam. O povo fez, do seu jeito, o carnaval para além do carnaval. Basta dar o feriado e o povo retoma as ruas.

Com isso o sistema fagocitou o modelo de gestão vigente até então, experimentou novas modelagens de negócios (como os minidesfiles e blocos de clubes) e deixou as ruas a novos embriões de blocos autônomos que não precisam de estrutura ou verba para acontecer. Assim, a prefeitura realizou um carnaval mesmo dizendo que não o faria e se eximiu de preparar a cidade para a tomada das ruas.  Este modelo das ruas, porém dura pouco, basta um carnaval com ruas autônomas em protesto (como já foram alguns bons carnavais) e tudo volta a ser controlado a ferro e fogo e quem sabe corda e ingresso.

O que cabe a nós? Como bons Clóvis, resistir, confrontar, se divertir e meter medo, porque sim, Clóvis meus amigos é pra meter medo, sem romantismos de um passado que não volta mais.

Fica a lição, aos blocos e escolas, também precisamos lutar pois o modelo posto é o carnaval do não povo que vai brigar para expremer seu tempo de desfile entre um episódio de BBB e um filme repetido, um zé carioca batendo caixinha de fósforo para o pato Donald ver. E fica a crítica ao cinismo de um sistema político que usou da bandeira da saúde pública para cancelar uma das festas populares mais importantes que temos, mas que no fundo só fez reorganizá-la em outros moldes econômicos onde todos os eventos privados foram repletos de aglomeração e covidário. Não podemos entregar o carnaval a esta modelagem, se assim fizer, já adianto que é melhor baixar os estandartes e enrolar as bandeiras, passou do tempo dessa massa popular que constrói a história que a história não conta assumir-se mais Clóvis e fazer em abril um carnaval para meter medo no sistema S.A. que tenta financeirizar tudo.

original publicada em: central dos bate bolas, twitter: https://twitter.com/centraldosbt
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856 Um Adeus ao Poeta

Muitos filmes do Subúrbio em Transe são marcantes para mim, porém hoje falarei de um que como tantos é especial para a compreensão de diversos conceitos de vida, espaço, lugar, etc. 856 A CASA DO POETA.

Falo hoje como uma homenagem póstuma a partida do poeta J. Cardias, que cedeu e abriu sua casa ao Subúrbio em Transe para realização de tal obra. O eixo do filme está na remoção da casa do poeta para a passagem do BRT, durante as obras olímpicas. O poeta e sua casa eram um elo comum, ali onde o Taco se tornou a memória, reminiscência de um lugar que não volta mais.

J. Cardias foi uma dessas almas brilhantes e anônimas dos Subúrbios, alguém que fazia de sua vida e seu quintal a sua poesia, sua passagem por esta terra esteve imbricada neste lugar, um terreno e uma casa no bairro de Vila Kosmos. Casa esta que na disputa econômica da passagem do BRT, perdeu para o imenso shopping. O que J. Cardias nos permitiu, foi conhecer uma outra esfera das remoções dos mais pobres, este modelo de operação urbana que sempre volta com uma maquiagem de progresso. O poeta nos mostrou a remoção de um lar, de um lugar, o apagamento em vida de histórias, memórias e referências.

O poeta hoje partiu, assim como um dia foi extirpado de sua vida o seu lugar. Porém nos deixa a história de sua vida como exemplo, nos deixa suas poesias como presente e nos deixa sua resistência como legado. Esse é nosso país, onde aos mais pobres só resta luta pela sobrevivência. Todos que passamos pela pobreza, em um determinado grau enfrentamos as mais deveras frustrações que a desigualdade nos traz e tentamos seguir em frente. Dessas contradições de dor, frustração e necessidade de seguir vivendo que tiramos o suspiro de expressar, sem saber se nossas músicas serão ouvidas por mais pessoas além de nossos amigos, se nossa poesia será lida e entoada em todas as escolas de formação, sem se importar se nossa pintura vai ser exposta em um museu de grande notoriedade. Seguimos vivendo e produzindo, mesmo que quase anônimos porque esta produção está aí pra afastar o peso da desgraça que a desigualdade nos coloca.

Ao poeta, e porque não vizinho (afinal são bairros coligados) fica nossa admiração e aos familiares fica nossa condolência.

Aos amigos, simplesmente recomendo que assistam ao filme 856- A Casa do Poeta. Todos que já passaram por uma perda violenta de seu lar vão se reconhecer e aos que nunca passaram vão sentir.

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Reflexão sobre o processo de refração dos coletivos e identidades

É possível pensarmos que as formas de organização coletivas que se tornaram um modelo padrão nas últimas décadas esteja chegando em um momento de refração.

Já é notável que, de alguns anos para cá este modelo foi perdendo sua autonomia como forma de resistência e sendo capturado pelo sistema do capital, seja pela ferramenta de fomentos financeiros, seja pela atração do trabalho para dentro do modelo de mercado, os coletivos foram ganhando cada vez mais um tom de pequenas e micro-empresas (mesmo sem ser). Esta queda, que acabou por criar relações de competição entre grupos, e afastamento de muitos que buscavam nestes uma linha de fuga, ajudou a desmobilizar possíveis redes com capilaridade e capacidade de produzir outras formas de vivência, de distribuição de força de trabalho, de fazer política.

Além deste, a organização em coletivos que se encontra capturada pelo sistema de poder, acaba por viver em si mesma, presa na necessidade da própria sobrevivência, como quaisquer brasileiros que não tem capital ou herança. Mas a questão dada é: o que fazer diante disso?

Se não se consegue mais retirar os coletivos e similares do sistema, pois os mesmos precisam dos parcos recursos fornecidos pelo sistema, e ao mesmo tempo não podemos mais contestar este sistema pelo risco de ser isolado do acesso aos parcos recursos, fica a questão: Como retomar caminhos de mobilização para além deste?

Da mesma forma caminha a questão das lutas identitárias. Não é nas pautas que caminha o problema, mas na forma como muitos grupos acabaram caindo no controle deste mesmo capital, que por necessidade de recursos pra sobreviver, caíram no fluxo tradicional e não conseguem mais ter força para traçar um contrafluxo ou uma saída alternativa ao mesmo.

Cada vez mais entendo que devamos disputar a sociedade orgânica, aquela que não está organizada mas é capaz de construir sua sobrevivência apesar da escassez. Esta sociedade não precisa se entender por uma identidade necessariamente, mas muitas das vezes por uma enunciação coletiva. Num dado momento vizinhos que se odeiam podem construir um laço tático de saída de um confronto maior. Vizinhos que nunca se falam não precisam deixar um ao outro passar fome, essa é a questão.

Entendo que esta disputa também não se dará por círculos de coletivos organizados, mas por entendermos o modelo de funcionamento social dos mais pobres ao mesmo tempo em que estruturamos uma saída social e econômica de massa, um projeto amplo de emancipação nacional.

Hoje as alas mais progressistas seguem perdidas em si mesmas, transformou-se o Ser de Esquerda em uma identidade que representa tudo aquilo que é bom. Uma leitura essencialista que nem o Marx em sua fase filosófica (como um dos filósofos da suspeita) ou os existencialistas e percursores das teorias em torno das minorias e identidades pensariam. Possivelmente um Marx em 2022 estaria escrevendo altas críticas a este bloco e se dedicando a ler os principais pensadores sociais e econômicos dos mais diversos campos e lidas.

Precisamos antes de mais nada aceitar quem somos: um país complexo, com pouco estudo, cuja base política se funda a partir das forças militares e oligárquicas, de bases religiosas fortes e cujo progressismo e conservadorismo disputam intensamente uma classe média. Boa parte da nossa esquerda nunca leu Marx a fundo e boa parte da nossa direita também nunca leu seus autores de fundação e citação a fundo. O que temos em maior força parece sempre ser o senso comum. Enquanto isso os mais pobres lutam por sua sobrevivência e buscam o acalanto nas mais diversas formas de expressão e espaços que sobram (sejam igrejas, botequins, rodas de vizinho, etc).

Pensar este tipo de projeto no Brasil é um enfrentamento difícil e delicado, visto nossa política ser tradicionalmente um campo de projetos de curta distância e tábulas rasas sobre projetos passados. O Brasil, enquanto país das dimensões e complexidades que tem, não pode se dar ao luxo de viver rateado por meia dúzia de famílias e eminencias pardas do poder cuja linhagem pode ser traçada desde sua origem.

É por esta complexidade que precisamos pesar nosso caminho. Que projeto de Brasil queremos e precisamos? Não bastará dizer aos céus: Somos a Esquerda, somos o lado certo da história! Todos aqueles que no Rio de Janeiro por exemplo viram as remoções para as obras olímpicas e da copa das copas, todos que viram sua casa cair com a pichação SMH tocada pelo maior partido de esquerda do país a época, não considerarão este o lado bom da história. O teleférico parado do Alemão é uma obra dessa esquerda que está sempre no lado bom da história, e quem está fora da bolha sabe que boa parte da recessão do país vem daí.

O Brasil quer uma saída disso e nisso, é preciso entender que muitos dos que votaram em Bolsonaro em 2018 sabiam o que era o Bolsonaro e aceitaram o risco social. Foi uma escolha também do povo, este mesmo povo que só se ferra na história e que várias vezes é taxado por memes como culpado. Não foi culpa, foi desespero, desespero de inúmeras pessoas que aceitavam qualquer coisa por alguma mudança. A burrice desta esquerda que ama desesperadamente os espaços de poder é que, no auge de sua arrogância segue sendo a melhor das opções sem sequer sentar com este povo para traçar um caminho comum e popular, segue apregoada entre os seus na busca do caminho certo da história sem construir uma alternativa a si mesma que não seja o retorno ao passado.

Porém diante disso fica a pergunta de Nietsche: “Você viveria sua vida mais uma vez e outra, e assim eternamente?” ao qual, a maioria dos brasileiros, cansados e exaustos do peso da vida, do peso da pobreza e das dores nas articulações dificilmente responderiam um sim. Como seremos capazes de construir um país que nunca foi construído? com acesso a educação de base universal e de qualidade a todos os brasileiros, quando veremos um arranjo político capaz de produzir um planejamento viável de se executar para os próximos 10 ou 20 anos? sob quais ferramentas seremos capazes de reconstruir o Estado a ponto de dar os direitos básicos da existência da vida aos mais pobres?

Da mesma forma, quando vamos ser capazes de aprender com os mais pobres que as lutas da vida não cabem nas caixinhas pré-formuladas que tanto travaram os coletivos e muitos grupamentos que tentam lutar por um mundo melhor?

Cada vez mais creio que os novos caminhos passarão por isso: Um projeto nacional viável, somado a capacidade de compreender e estarmos junto nas redes mais orgânicas da sociedade. Só por aí seremos capazes de combater o niilismo político em que estamos e o cansaço na busca da construção de novos valores éticos que sejam capazes de repactuar nossa sociedade. Não é simples, e não há saída concreta seja pelo retorno ao passado onírico ou expectativa de um futuro que nunca vem. A saída estará na capacidade de trazermos resposta coerente para resolver este presente material em que estamos assentados.

criança de bicicleta em via expressa do BRT
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Eu tenho você não tem

Por que em meio a tanta miséria parte significativa do povo ainda enxerga com prazer a ostentação?  Copos da Stanley de centenas de reais, bezerros dourados na capital paulista, farras em apartamentos de luxo. Porém não é só nas estratificações mais ricas da sociedade que habita esta forma de pensar.

Se tem uma coisa que o capital soube explorar muito bem é o fetiche da mercadoria. Ele trabalha como desejo e o simbólico para transformar o tempo todo um produto em algo mais desejável. Com a artimanha da publicidade, qualquer coisa pode ser desfigurada do trabalho empreendido e remodelado para algo mais palatável ao nosso imaginário. Este é um bombardeamento que vemos todos os dias.

No Brasil, isso se torna altamente nocivo a medida em que nossa concepção de sucesso se baseia muitas das vezes em um excerto de bens de consumo como símbolo de ascensão social.  Vou citar aqui um fragmento do camarada Diego Felipe, professor de filosofia, pensador suburbano e midiativista sobre o tema quando ele relembra de uma antiga propaganda de TV:

“É a posse de “coisas exclusivas” que permite a diferenciação entre os “estamentos da sociedade”. É um valor neoliberal que nos anos 90 foi bem materializado em uma propaganda de um produto escolar, uma tesoura do Mickey anunciada pelo jargão “eu tenho você não tem”. Esta “mentalidade psicológica infantil” que é reproduzida pela ideologia neoliberal vale para tudo hoje. De marcas de carro que são vendidas a preços surreais até os últimos modelos de videogames como o Playstation 5. Para a elite brasileira mais vale pagar caro e ter o que os outros não têm, do que pagar preços justos e não poder afirmar status diferenciados”.

Independente do trabalho empreendido, há um grau de exclusividade que é engendrado em certas marcas, onde é notório que tanto a técnica quanto as tecnologias envolvidas não são os elementos principais que definem o custo. Quantas não são as diferentes lojas de roupas cujas camisas vem de uma mesma fábrica chinesa? Produtos similares com etiquetas distintas se diferem em preço via capacidade que uma marca x ou y tem de capilarizar na sociedade o seu sentido de ser. É por conta disso que um mesmo tipo de camisa de malha pode variar de 30 a 300 reais.

O Brasil tem se habituado a estar nesta construção onde a aceitação social está diretamente ligada a capacidade de consumir os mais diversos produtos, tendo como principal fundamento mostrar que o indivíduo está em outra estratificação econômica. É com base nisso que uma pessoa que melhora minimamente sua condição financeira aceita endividar-se para ter o carro do ano, a roupa da marca mais cara, a decoração de interiores da tendência, o celular que poucos conseguem ter. Cabe a própria pessoa, após a compra, criar a justificativa que valide a qualidade de forma a aceitar o preço. Para algumas, isso precisa ser devidamente registrado nas redes sociais, a vitrine onde todos parecem agir como pessoas públicas. Enquanto somos tomados por esta onda de mercado, vamos sentido o esvaziamento do sentido de ser no mundo batendo a nossa porta.

O ciclo do fetiche ostentação nos coloca numa prisão sem muros, onde cada fluxo de pensamento direciona a vida em função do que os outros tendem a pensar sobre nossas posses. O que passamos a construir é um laço constante de servidão e uma tentativa de responder a grande crise existencial a partir de redes de ressentimento. No fim todos sofrem, o consumista ressentido que não consegue encontrar um sentido profundo no que faz e nos objetos que compra e consome e aqueles que não conseguem alcançar uma linha de consumo e acabam por ser segregados pelo primeiro grupo.

O ser humano que antes recorria ao transcendente como uma recusa a vida real ainda era capaz de enxergar um tempo estendido, um mundo póstumo, uma obra permanente fazia significado. Hoje, no aprisionamento do fetiche, esta forma de apaziguar seus demônios tem um grau de imediatismo extremamente alto. Tão alto que a relação entre o prazer da ostentação e a frustração com o objeto precisa ser constantemente renovada.

A trilha aberta não traz respostas e faz o ser humano estar frente a frente com a fraqueza. Talvez por ser incapaz de sobreviver a existência do que é viver sem saber ao certo quanto tempo temos, para que estamos vivos aqui e sem termos nenhuma garantia de redes de proteção. Assim, não escapa do bombardeamento social, deste imenso campo de disputa onde cada indivíduo tem o “dever” de mostrar que venceu na vida. Nisto, o que construímos é um sistema social e cultural de pirâmide cuja prova do sucesso vem do comparativo entre aqueles que conseguem ter com o que não tem (seja o que for, ainda que não seja útil).

Este sistema de – consumo, fetiche e ressentimento- não resolve a crise e a existência humana, antes disso ele aprofunda. Existir envolve a nossa capacidade de afetar, de agir no mundo, de produzir e criar e de, mesmo que de maneira inconsciente, operarmos pela preservação do coletivo. Somos seres fracos quando prostrados na lógica do consumo cuja exclusividade alimenta nosso ego pela depreciação do nosso semelhante. Por sua vez, somos mais fortes conforme somos lançados no oceano do acaso criando ciclos de produção coletiva da vida e do próprio sentido dela.

Precisamos repensar um novo caminho, onde seguir em frente passe pela força de suportar as agruras e dores que o acaso abre. Mais que isso, precisamos recuperar uma ética que nos trouxe e nos manteve vivos até aqui. Apesar dos pesares, o ser humano traz em si o desejo de viver e seguir vivo, por mais caótico e casuístico que seja a trilha.

Podemos ter um exemplo destes caminhos na dolorosa estrada do Samba, que como bem lembrava Nelson Sargento: foi duramente perseguido. Em meio ao massacre que tenta constantemente apagar da história a potência de muitos povos, alegria de Jovelina está em formar uma corrente com elos muito resistentes, daqueles que levam bom tempo para arrebentar só para incomodar muita gente que quer terminar com nossa cultura.

É um crime pagar 200 reais em uma camiseta de malha da Osklen que não tem nada de muito diferente de uma camisa de 50 reais da Hering? Não, mas deveria ser no mínimo ofensivo acharmos isso normal em um país que parte gigante de sua população passa fome. Esse é nosso bezerro de ouro da escala do cotidiano e é isso que precisamos desnaturalizar. E se é pra comprar roupa, por que não passarmos na feirinha da Pavuna primeiro?

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Sobre a complexidade dos Subúrbios segregados

Desde a mudança da organização administrativa da cidade do Rio que dividiu a cidade por Áreas de Planejamento e Regiões Administrativas e as legislações vigentes se deram rua a rua, o termo Subúrbio não cabe na lógica formal do planejamento e da administração pública. Ele porém segue pairando no ar como uma enunciação coletiva.

A cidade segregada se deu durante anos por conta de expropriação de tributos de determinadas zonas da cidade e de uma escolha clara de como se daria a distribuição espacial deste território. Assim, as administrações vigentes atuaram de modo a privilegiar um lado específico que seria destinado aos mais ricos e grande parte da classe média. Expropriação esta, que por sua vez nunca foi corrigida por nenhum governo.

Hoje, a melhor expressão de Subúrbios é muito menos territorial e muito mais sob modos de fazer do povo. A construção de laços dos mais diversos. Parte da sociedade organizada em torno desta enunciação busca um caminho de costura e reconstrução do que seria esta identidade. A identidade por sua vez nunca dará conta da complexidade e das dinâmicas populares que giram em torno do sentido de ser ou não ser suburbano no Rio de Janeiro.

Boa parte da pujança e do imaginário se constituiu por algumas políticas de Estado. Escolas públicas, habitação de interesse social, eventos cívicos, o Varguismo teve um papel importante nesta construção. Soma-se a isso a enorme resistência dos povos negros, sempre preteridos e vilipendiados na sociedade, são eles que constroem em seus terreiros, aquilombamentos e barracões o mundo do samba, do funk, da soul music, dos encontros na escassez e da fé. Os Subúrbios são um amálgama disso tudo e muito mais.

Se a relação da cidade formal com a favela é de medo e terror, onde o que separa a favela da cidade formal é que é aceitável pelo sistema o direito do Estado matar na favela e de tratar seus moradores como não cidadãos, nos bairros dos subúrbios que não são considerados favela é dado a invisibilidade e a captura pelo exotismo. Assim, passa ano e sai ano, e cada administração pública usa de uma lógica específica para tentar capturar o discurso e amarrar em torno de uma identidade passível de ser controlada.

As décadas de 70, 80 e 90 levaram os moradores de regiões ditas suburbanas a migrar para uma emergente Barra da Tijuca onde os modos de vida e cultura deste novo modelo de cidade eram vendidos diariamente. Quem viveu estes anos se lembrará de como era matéria dos principais programas de estilo de vida as idas de jogadores e artistas a churrascarias e restaurantes, como era legal o jogador de futebol faltar o treino pra bater um futvolei na praia e muitas outras referências. Enquanto isso, no território onde muitas destes nasceram e se iniciaram, o que vingava eram os bailes. Dentre eles, um modelo ganhou força e ajudou ainda mais a segregar a cidade, os Bailes de Corredor. Os Bailes de Corredor mudaram muito a forma como o adolescente curtia a festa e vivia a própria cidade, pois alimentava um bairrismo combativo. Em pouco tempo, jovens passaram a frequentar festas de outros bairros apenas no intento da disputa.

A beira disso, também nestes anos, explodem o modelo evangélico neo-petencostal Macedos e Malafaias como grandes expoentes, mas este modelo não pode ter essa leitura simplista. O neopetencostalismo opera muito menos por meio do texto escrito, de uma liturgia organizada e centralizada, e muito mais pela experiência pessoal de transcendência. A forma de fé cresce por sua simplicidade organizativa, basta uma liderança capaz de produzir contato com o transcendente e ali poderia se fazer um círculo de oração, um ponto ou até mesmo uma igreja.

Ao definir o adversário a partir de qualquer um que não professe a fé, o petencostes por sua vez acaba que promove um movimento silencioso e silenciador. O fiel não deve se misturar ao mundo, deve produzir a si mesmo e estar junto com os seus (a igreja) num laço de santidade. Para o neopetencostal, o outro tende a ser um desagregado que leva a vida influenciada pelo adversário. A situação piora diante de outras crenças, em especial as crenças de matriz africana, onde aí sim quem as professa é visto como um profeta do adversário. Este tipo de signo constrói boa parte do campo de fé suburbano hoje em dia, de fortalecimento social e caminhos de coletividade. Dali levantam-se muitas lideranças, e outras muitas ainda se aproveitam para usar deste sistema como palanque. Mas ainda assim é preciso nos aprofundarmos nas relações e nos sombreamentos, pois uma profetiza neopetencostal em um círculo de oração está muito mais próxima dos modos de viver de uma benzedeira ou mãe de santo do que de um Silas Malafaia da vida.

Ainda assim, é curiosa a relação de conflitos que apesar de parecer maniqueísta, muitas das vezes passa por um relativismo. Quantas não são as famílias suburbanas que tem sentado na mesa um filho que trabalha para a polícia (uma das possibilidades de emprego e saída pra vida do pobre) e um filho que vive de dinheiro da contravenção? Mas nossas formas de entender certos signos sempre serão outras.

Quando a gente é pobre pra valer a gente vem forjado na violência, no palavrão, no papo reto, e na ação visceral. Quem tem fome precisa ser visceral pra sobreviver, mas também é solidário. A gente aprende a lidar com os signos de forma diferente, a lidar com o senso de justiça de forma diferente, pq a vida violenta a gente.

A vida violenta quando todos parecem amigos, mas uma mudança simples no recorte de classe deixa claro quem está num ciclo abaixo da pobreza, violenta quando as coisas e lugares que frequentamos são preteridos ou esquecidos na história. É violento quando alguém tem medo do seu lugar, da sua rua, do seu lote. É assim que a gente é criado, isso traz signos pra gente lidar com a vida.

O projeto de poder dos que conseguem gerir o sistema (mega empresas, governos, ricos, investidores, etc) envolve a manutenção de um modelo inspirado em uma certa classe média modelo. Não há um traço político concreto que seja realmente popular e massificado, capaz de interpretar os signos e criar uma política de estado em torno deles. O trabalho feito é capturar tudo que pode, gerenciar as vozes e interlocutores dissonantes por meio de inúmeros sistemas de controle social (como a lei da vadiagem por exemplo).

É assim que por exemplo, não há nenhum projeto significativo de planejamento de recomposição da cidade formal que gere pólos de interesse pra classe média reocupar os subúrbios cariocas. Ao mesmo tempo, há interesse do poder imobiliário (entre outros) em movimentar parte de sua economia nestes territórios hoje bastante esvaziados reconfigurando-o como espaços do modelo padrão de consumo da classe média (a forma condominial apelidado de barra da tijucanização por exemplo).

Por outro viés, parte dos modos de fazer e cultura que tanto manteve o povo vivo em tempos de escassez e do esquecimento político é traduzido e adequado para ser digerido e palatável a parte da classe média que tensiona ou entende o peso da desigualdade. Porém tudo é escolha, exemplos: ao invés de por pra frente uma política de revitalização dos centros de bairro a partir de seus cinemas de rua, a política de cinema de rua escolhe um cinema de um bairro específico, revitaliza e considera este um pelo todo. Assim que tudo é feito, escolhem-se alguns bairros e trazem alguns melhoramentos estruturais coletivos nestes e fazem o um ser a representação do todo.

Não é simples trabalhar com o sentido dos Subúrbios no seu espectro mais complexo sem lermos sob a ótica de suas reais narrativas que são duras. A beleza dos subúrbios está nesse olhar total que passa inclusive pelo que nos parece assustador e gostaríamos de esconder, assim como o Clóvis que pode esconder por trás de sua máscara o mais engraçado ou o mais temido dos seus vizinhos.

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Já não basta sermos Latinos, já não nos bastam as identidades

É muito curioso pensar como as palavras tem um certo poder. Em nome de uma resistência ao imperialismo antiamericano, buscamos por muito tempo a construção de uma identidade latina. Esta identidade, que como qualquer outra se forja pela aglutinação e trabalho sobre alguns elementos comuns, resplandeceu na tentativa de consolidar uma força continental capaz de enfrentar o domínio dos EUA (país economicamente mais poderoso).

De certo porém, este postulado cria problemas e limitações. Entre elas, um problema notável é que a busca de uma identidade latina como resistência a uma identidade anglo-saxônica acaba por repetir a dicotomia do processo de expansão imperialista que vigorava desde as grandes navegações do mercantilismo até o processo industrial (dos primórdios ao mundo contemporâneo). Isto é, em nome de uma liberdade dos povos, acabamos por traçar uma disputa territorial ainda construída sobre signos de uma relação império-colônia, mantendo firmes todas as suas contradições.

Somos capazes hoje de determinar quantos povos compõem todas as relações sociais, econômicas e culturais do novo continente? Esta é uma pergunta importante de refletir. Há similaridades nos processos de apagamento histórico dos diversos povos que habitavam as terras antes das explorações, assim como dos povos que foram forçados a estar nestas terras como mão de obra escravizada, histórias que resistiram em meandros e relações moleculares, dentro das redes possíveis de serem traçadas. Redes estas que inclusive precisam considerar a construção hegemônica na sua formação cultural.

Com base nisto, entendo que meras disputas de resistência ou recortes que buscam negar o traço hegemônico como parte da concepção de visão de mundo, se tornarão tão enviesadas quanto aquelas que não tentam compreender as construções que estão nos interstícios ou subterrâneos das formações de saberes. De certa forma, uma leitura do Imperialismo que se mantém hoje, sem a leitura crítica das mudanças materiais do mundo, também reflete muito mais uma tentativa de manter uma identidade do que foi concebido com resistência progressista do que uma realidade a se enfrentar. Não precisamos mais entender o que é o Imperialismo, apenas seguir repetindo os mantras estabelecidos em décadas para aglutinar os nossos em torno da resistência.

Debater por exemplo, se o Halloween ser comemorado no Brasil é lícito ou se isso representa uma forma de aculturação e colonização, é deixar de lado que tal festa já é expressada de forma sincrética no México por exemplo e em outros inúmeros países do globo. Sem considerar que são parte de uma mesma visão de mundo que nos leva a celebrar o dia 2 de novembro como data de relembrar os nossos ancestrais. O que nos é mais interessante? Simplesmente negar a festividade ou buscarmos um aprofundamento da experiência, da história e da formação da mesma?

Outra referência interessante pra reflexão. Enquanto líderes globais discutem mais uma vez a urgência da crise climática, tentando encontrar caminhos quase impossíveis de saída, vale lembrarmos da experiência de Evo Morales com a Lei da Terra, que possibilita uma nova proposta de visão de mundo. A mesma só é possível de ser concebida se lermos dentro de uma costura capaz de interpretar o melhor dos encontros entre a origem indígena de Evo, um filho dos povos originários deste território continental, com a cultura latino-europeia que desenha o contrato social constitucional de nossos países.

Nós, enquanto humanidade, temos no história de nossa existência o desejo de conexão com a terra. Conexão esta que num dado momento abandonamos e cuja cultura do homem como um ente separado da terra vingou. Esta cultura precisa ser religada em todas as esferas possíveis. Pensar o Planeta como um ente completo, do qual somos parte, e projetar uma rede de partilha vai exigir muitas viradas de chave. A dificuldade maior será: como conciliar isso em um mundo onde a Terra é propriedade privada e peça fundamental para a manutenção do sistema de produção de riquezas? Vale lembrar que estas mesmas perguntas já foram feitas durante a pressão pela ruptura dos modelos escravagistas, onde homens, eram vistos exatamente assim: como propriedades privadas (objetos) e peça fundamental para a manutenção do sistema de produção de riquezas.

Neste mundo global, onde cada vez mais as discrepâncias entre as concentrações de renda e a miséria dos povos se dá. Os modelos de governo se encontram limitados e ineficazes diante das formas de organização supra territoriais, precisaremos construir e recuperar ferramentas que explodam estas relações, compreendendo que uma política isolada não resolverá. O atual contexto da crise global inclusive nos pede uma virada de chave mais radical (indo a raiz dos problemas) e de coragem de mudança do sistema em que estamos inseridos. A busca por uma identidade comum nos falha por também representar uma fronteira que enviesa as relações de exploração.

Com base nisso, sabemos que não é fácil uma mudança de paradigma. Ainda hoje vemos que não é tão simples a abolição completa do racismo e da escravidão na sociedade. Da mesma forma, assim como os mais pobres ainda são lidos como seres passíveis de todo tipo de exploração, não será simples a humanidade abolir o sentido de que o Planeta é só um objeto passível de exploração e aceitá-la como um organismo vivo completo do qual fazemos parte. Podemos e devemos iniciar religando esta ética que se mantém nos povos mais originários e mais tradicionais do planeta, independente dos continentes que habitam. Em nossa visão de mundo paradigmaticamente ocidental, economia e ecologia tem um mesmo radical, óikos, nossa casa que também é nosso Planeta. Hoje, objetificamos a Terra, exploramos seus recursos e sequer somos capazes de utilizar isso para fins de manter viva a nossa espécie. Explora-se tudo que a mão alcança, para benefício de meia dúzia. Basta ver como países que movem parte significativa da economia pelo agronegócio são também bolsões de populações que passam pela fome.

Precisamos recuperar o olhar integral da humanidade pela Planeta. Isso não será simples ou harmônico, pois mexe diretamente com quem garante suas riquezas, poderes e seu bem-estar às custas da exploração de todos (sejam animais, vegetais ou minerais) os entes que formam este ser, mas precisaremos enfrentar. Precisamos aprender a retomar as conexões mais profundas dos que celebram suas colheitas, ou o equilíbrio, a ancestralidade e as mais diversas formas de contemplação da vida. Talvez um dos nossos erros hoje, é acreditarmos que esta saída será tranquila, pacífica, por ações individuais, não será, vai exigir enfrentamento, como qualquer luta de libertação humanitária sempre exigiu. Precisamos abolir o planeta do processo de escravidão em que ele foi colocado.

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Arquitetura e Urbanismo, brasil, cultura

12 de outubro – Nossa Senhora da Conceição Aparecida, uma reflexão sobre o espaço.

O Brasil profundo se encontra e se reconhece em Aparecida. Na basílica onde multidões buscam um milagre, um sinal, uma recompensa ou uma simples esperança do cotidiano. Hoje também é dia do Cristo Redentor (o filho) e arquitetura/escultura símbolo da cidade do Rio. Dia 12 de outubro o país conecta sua religiosidade, sua espacialidade, seus territórios e seu cotidiano.

É comum gastarmos esforços e discussões sobre a produção do espaço pelos mais diversos parâmetros econômicos e materiais. Estudamos a viabilidade, mobilidade, eficiência, capacidade de produção e de investimentos. Pode ser, mas o habitar é uma teia complexa, que passa pelo material mas não só por ele.

As múltiplas Nossas Senhoras que existem no mundo, são referência a uma mesma santidade católica, Maria mãe de Jesus, cujos nomes diversos expressam um momento ou um lugar especial. De certa forma, Maria, que para o catolicismo tem o papel intercessor entre o Cristo e a humanidade, também constrói socialmente esta imbricada relação de pertencimento social do ser humano com o lugar. O espaço ganha importância e sentido a medida em que nele se firma a aparição, seguido do primeiro milagre, do burburinho social e da peregrinação capaz de transformar o espaço ermo em lugar de encontro.

Este é um indicie importante para pensarmos nossa capacidade de ocupação dos espaços: onde estão nossas conexões de importância com ele? Seja Nossa Senhora Aparecida conectando o Brasil ao Paraíba do Sul, seja o Cristo Filho e Redentor conectando a Mata Atlântica com a vida cosmopolita de uma cidade metrópole. O viés da ocupação que acontece pelo cotidiano das experiências populares podem trazer respostas para a desconexão que há entre a maneira como pensamos as cidades e o resultado final de seu uso e ocupação pelas pessoas.

Claro que podemos fazer a leitura a partir dos eixos de poder e controle, da interesse da igreja católica (enquanto instituição), mas isso não seria possível de acontecer sem o movimento capilar do povo. Por conta de nossa capacidade de construir significação para além do que os olhos veem, produzimos redes que nos permitem imaginar, sentir, produzir arte e criar os laços da vida humana. Tanto o evento miraculoso de Aparecida que funda uma cidade, quanto o Cristo Redentor que do alto do monte nos observa, ambos apontam para os desejos humanos de construir e relacionar suas vidas com o simbólico e afetivo.

Maria em suas múltiplas representações se conecta a Pachamama e dialoga com Onilé nesta busca humana pelo signo da fertilidade na Terra Mãe e Morada de todos nós. Nesta linha que o urbanismo, enquanto ciência surgida entre o século XIX e XX encontra sua limitação por separarmos a terra de nós mesmos e de nossos sagrado, e implementa caminhos piores ao torná-la um produto mesurável financeiramente. A história humana é um desenlace milenar de experimentos e de comunicação do ser entre os seus e do ser com a Terra. São múltiplas as linguagens que um dia se estabeleceram, se modificaram ou se esvaíram, algumas completamente, outras deixando rastros e vestígios.

Quando um rio morre para melhorar a eficiência de uma mineradora, uma parte de nós morre com ele, atualmente aceitamos isso em nome desta visão que busca o progresso constantemente, mas não teríamos a mesma ação se considerarmos a importância divina deste rio como parte de um todo que nos constitui. Compreender a ocupação dos espaços e a espacialização dos territórios por um viés distinto do que nos é hegemônico hoje nos ajudará a constituir outras histórias para a formação de nossas cidades, muitas das quais estão no subterrâneo dos saberes a espera da investigação que as traga.

Quantas estradas, caminhos, vielas não foram abertos pelas cavalgadas dos peregrinos? Quantas histórias não ficaram por estes caminhos? Ruas, vilas e cidadezinhas que testemunham pedaços de vida de inúmeros anônimos cujos causos vão sendo lembrados por onde passam. Estas pequenas doses de fé costuram uma teia popular que conecta Aparecida, aos oratórios esculpidos por antigos artesãos, aos santeiros, aos pequenos alteres improvisados que garantem a proteção dos botequins, são muitos os espaços e dinâmicas que aprendemos com o povo.

Que neste dia 12 pensemos nossas formas de conceber, produzir e viver o espaço por outro prisma. Onde o olhar da criança que corre pela rua, ou olhar do adulto que peregrina e deposita sua fé, tragam indícios dos rumos a se tomar. Ao buscar esta gramática dos saberes e modos de vida do povo, vamos nos tornar mais capazes de constituir espaços onde o pertencimento e a possibilidade de construção das relações mais profundas que concebem o bem viver social apareçam. Convém a nós, compreender a gramática com a qual o povo escreve parte de sua história em um determinado tempo e espaço, para então construir nossas narrativas a partir desta comunicação. Quem sabe assim, consigamos sair do ciclo destrutivo no qual o planeta se encontra, não há resposta simples quando estamos diante da necessidade de reformulação de paradigma, mas devemos tentar buscar caminhos.

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cultura, rio de janeiro, Subúrbios

DOS SUBÚRBIOS ROMANTIZADOS ONDE VIVEM OS BONS SELVAGENS

No Rio de Janeiro segregado e desigual, o suburbano é aquele que, através de um olhar tático sobre a vida tenta resistir as intempéries das escolhas políticas extremamente desiguais que comportam esta cidade. Se outrora os Subúrbios foram um intermeio entre o urbano e o rural, hoje podemos refletir sobre o mesmo termo ser um intermeio entre o a parte aceita da cidade e a favela.

Algo importante a dizer, quando falamos em favela, em subúrbio, em urbis, o que está em pauta não é a morfologia, a distância periferia-centro ou outros. O eixo principal é a forma de organizar e distribuir socialmente o povo e os recursos do território. Neste sentido podemos traçar por exemplo que: Favela, é o território onde o Estado considera legitimo matar, com anuência da opinião pública. Independente de seu traçado urbano é um território excluído dos mais básicos direitos civis como acesso a moradia, saneamento, transporte, direito, lazer, cultura.

Quando se fala em Subúrbios, o que temos é uma fusão das condições da parte aceita da cidade com a parte que a cidade não quer. Falamos sobre territórios de grande ambiguidade e discrepâncias intraurbanas. Uma distribuição de bairros de classe média a bairros mais pobres, alguns pequenos núcleos melhor estruturados comercialmente e imensos vazios urbanos negligenciados. A violência explícita que incide sobre as Favelas, não incide de mesma forma sobre os lugares que se denominam Subúrbios. Nestes a violência social se organiza de forma mais implícita, em geral pelo descaso. Ambos porém, enfrentam o viés da precariedade socioeconômica da vida como elo comum. São muitos aprofundamentos que já foram trazidos em alguns textos aqui e que continuaremos a trazer em mais textos logo a frente.

O recorte que queremos trazer neste momento consiste nos riscos da romantização. Entre as inúmeras formas de resistência social, a busca de um Subúrbio Ideal é uma delas. Esta busca não consiste apenas na reminiscência saudosista do uso da rua, das pipas, das cadeiras de quintal, ela também incide na própria construção de um sentido de identidade. Tentamos encontrar um sentido único e definido de Subúrbio, seja pela auto concepção na busca de um sentido unificado cultural que o defina, seja na busca de um perfil suburbano tipo, um padrão de referência que dê distinção ao personagem. A questão é: como unificar em torno de um sentido toda a complexidade de relações, muitas das vezes hiper contraditórias? Como traçar uma identidade suburbana que trate como iguais por exemplo os moradores da Tijuca, do Méier e do Cesarão?

As tentativas de identidade acabam por abarcar um certo nicho ou grupamento cultural com o qual consegue traçar uma linha que guie a narrativa e manter invisíveis um oceano de multiplicidades e de outras narrativas reais que coexistem com estes. O samba por exemplo, por toda sua capacidade de se capilarizar nos espaços dos territórios suburbanos apesar do status quo do projeto de nação vigente, consegue fazer um bom papel nesta costura. Porém o samba tem seu reconhecimento neste papel hoje, depois de décadas de perseguição policial e criminalização. Como pensar as casinhas coloniais, arquitetura referência de uma política de Estado que buscou nas inspirações neocoloniais (remetendo às cortes portuguesas) os signos de sua estética, pertencem ao mesmo corpo de símbolos identitários que o samba duramente perseguido por ser negro?

Um dos meios mais simples de tentar unificar consiste no não aprofundamento das questões, mantendo-as na superfície sem explorar ou dar voz aos contradições. Algo muito bem trabalhado por exemplo pelo marketing, onde até o slogan mais vazio de significado como por exemplo “coca cola é isso aí” vira uma máquina de sucesso.

Os riscos desse processo é que: sem aprofundamento, temos muita dificuldade de romper com a estrutura de segregação que conforma o território, além do imenso risco de criação e manutenção de estereótipos. E este é um ponto crucial. Para seguirmos em frente precisamos lembrar que, quem tem o poder de comando do território é quem define as políticas sobre ele.

Embora o Rio viva grandes avanços, em especial através da cultura onde os intelectuais orgânicos brotam dos subúrbios, favelas e baixadas de geração em geração, estes esbarram nos limites de quem detém o poder. E são estes donos do poder que tem a capacidade de captar as narrativas e escrever de forma mais massificada conforme lhes interessa. E é assim que por exemplo um problema do subúrbio ou favela que a elite não quer resolver se transforma em exemplos individuais de superação, ainda que o protagonista do exemplo só esteja tentando manter sua família minimamente viva.

O poder, como um ente representante da civilização, consegue por um braço manter o território sob controle e por outro braço criam a narrativa romantizada em torno dessa má qualidade. Não precisa, portanto, dar cabo de resolver as questões estruturais que garantam qualidade de vida a todos os munícipes. Ainda mais nefasto, conseguem transformar esta romantização da pobreza em mercadoria ou evento. Nesta manutenção da segregação, os suburbanos ou favelados são constantemente tratados (até pelos mais progressistas) como o Bom Selvagem de Rousseau. Talvez como um meio inconsciente de se eximir da responsabilidade de dar a este cidadão o direito a experimentar dos mesmos valores e hábitos que são destinados às partes mais burguesas da cidade pela estrutura material.

Uma frase do filósofo Wallace Lopez que sempre me diverte ao ouvir em suas palestras: “A Regina Casé gosta da favela, mas não mora na favela”. É importante termos esta consciência política e social. Romantizamos que o morador da Zona Sul não consegue apreciar o futebol suburbano, o nosso botequim o nosso futebol de domingo.

O importante, porém, é entendermos que qualquer morador dos territórios abastados pode dirigir seus automóveis até o futebol ou pegar as duas conduções necessárias para ir de uma Gávea a Olaria por exemplo, mas nem todo morador de Olaria que joga o futebol terá o dinheiro pra ir a um teatro na Gávea. Fora que, muitos moradores suburbanos sequer terão o direito de pisar numa praia sem serem taxados como marginais. Direito a cidade é também sobre isso, e não há romantismo que faça isso ser costurado com facilidade.

Assim a cidade do Rio de Janeiro segue se construindo pelos mesmos donos da bola (e do campo) embora muitas vezes mude a cor da embalagem. Cabe a nós buscar a fundo compreender como este mecanismo de controle se dá.

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