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São muitas as cores da minha bandeira

Nossa terra tem palmeiras onde canta o sabiá, já dizia o poeta, embora a sabiá que mais ouvi cantar nasceu fruto de uma jaqueira em Oswaldo Cruz bem pertinho de Madureira. São muitas as árvores da nossa vida, assim como são os sabiás que por aí avoam, bem como muitas são nossas bandeiras. Cresci sob a sombra de uma amendoeira que infelizmente a civilização torpe assassinou, toco tambor sob a benção da Tamarineira que um cacique um dia plantou.

Minha bandeira não é vermelha ou verde e amarela, esse país do medo cansou. Minha bandeira é verde e amarela, mas também é vermelha sangue, mas também é azul e branca, verde-branco e grená, branco e vermelho era a bandeira de meu avô e trago também no coração, como bom neto de Bangu que sou. Não me interessa mais a política dos corpos tristes e amedrontados, o Brasil é maior que isso e sinto muito os amantes do passado, o Brasil não cabe em uma bandeira só. Sâo tantas as bandeiras que me dariam esperança em um mundo novo, que seria impossível fazer cabê-las aqui.

Quero ver caminhando comigo aqueles que estão felizes por ganhar uma copa latino americana flamulando suas bandeiras preto e vermelhas, quero ver pular de alegria os cruz maltinos por saírem do sufoco, e que brilhe a estrela solitária assim como terá de brilhar a estrela vermelha em favor do povo. Aos que estão com medo, aos que estão com raiva, não me levem a mal, mas não dá pra enjaular o universo de dores e alegrias que somos dentro de suas caixas pré-montadas que já não respondem a realidade da humanidade.

O Brasil ameríndio, negro, favelado, macumbeiro nunca coube nos comerciais de margarina, nunca tomou o café da manhã da Xuxa e nunca teve a cozinha da Ana Maria Braga. Somos uma espécie de Macunaímas subversivos. Foi esse Brasil que ficou sem vacina a tempo, que morreu e que deu um não ao projeto de poder de vocês. Esse Brasil que são muitos Brasis emaranhados não escolheu o Lula por que o idolatra, mas o escolheu principalmente pra dizer um não a vocês. Esse projeto de poder antiquado, que funciona na base do encarceramento, do terror, de enquadrar e enjaular. O povo sofrido já sabe como lidar com o bico do fuzil (infelizmente) e não vai cair nesse terror barato, podem armar o alçapão a vontade.

E nessa terra que, além de Palmeiras, tem Corinthians que abre os caminhos na paulada, vocês ainda tem muito o que aprender com os povos originários, a começar que a vida dos sabiás não cabem numa gaiola. Não fomos feitos para ficarmos nas suas jaulas, mas para voar livres.

A principio, sigo a plantar as sementes nessa tentativa de construir um universo tão plural e diverso onde posso ver livres e felizes todos sabiás, curiós e uirapurus. Aos que se acham os representantes da verdade, da pátria e de Deus, aos que se acham capazes de reduzir o Brasil a duas cores, sinto muito desapontá-los porém, são infinitas as cores que compõem os sonhos do nosso País.

E no mundo onde livre cantarão os sabiás, deixo um recado da sabiá que encantou os filhos da jaqueira:

“Não temo quebrantos
Porque eu sou guerreira
Dentro do samba eu nasci
Me criei, me converti
E ninguém vai tombar a minha bandeira”.

croqui original 2017 – autoria própria.
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Fragmentos sobre o empreendedorismo

Algumas palavras caem no senso comum e vão ganhando formas diversas enquanto se perdem no seu conceito. Assim aconteceu com sustentabilidade, assim está acontecendo com o empreender.

Em nome de um sistema de marketing que pretende transformar o ato de empreender em um padrão natural, quase uma essência humana, vamos criando máscaras e distorções históricas tremendas. Uma delas é dar o ar científico do termo ismo a palavra, e outra delas é investigar o ato de empreender como um ato a-histórico, atemporal, como se o conceito existisse desde nossos primórdios.

Primeiro precisamos entender que um conceito é cunhado e consolidado quando um certo conjunto de possibilidades e significações corroboram com isso. Em sociedades como as primitivas, ou mesmo na era do bronze, o conceito de empreendedor não cabia. O que falamos aqui é algo muito similar com as tentativas forçadas de vincular Jesus ou os indígenas ao comunismo marxista. Ainda que não haja uma definição unanime sobre o conceito de empreendedorismo, alguns dados são bem-vistos, entre eles a capacidade potencial de inovar em algo assumindo os riscos.

A problemática da discussão do empreendedorismo se dá quando analisamos processos complexos de inovação apenas a partir dos indivíduos que centralizam a gestão ou liderança do processo sem assumir que estes processos são uma construção de corpos coletivos (direta ou indiretamente).  A busca de competitividade e inovação constante fez com que aumentasse o grau de investimento do sistema em empreender o que materialmente é muito bom. O ponto crítico está justamente em um simbólico que implementa em torno de algo amplo e social a um homem. Brecht em seu famoso poema: “Perguntas de um trabalhador que lê” já alertava a esta crítica, questões como:

“No dia em que a Muralha da China ficou pronta,

Para onde foram os pedreiros?

A grande Roma está cheia de arcos-do-triunfo:

Quem os erigiu? Quem eram aqueles que foram vencidos pelos césares?”

Nenhuma sociedade, nenhuma aventura humana na terra, se reduz aos seus ícones e heróis. Os próprios estudos sobre inovação contemporânea já compreendem a importância capilar de todos aqueles que estão vinculados nas redes envolvidas na construção dos seus caminhos. O problema é que, refletir esta materialidade dos fatos rompe com um simbólico fundamental de sustentação do sistema que também é antiquado, a construção do incone-herói.

O que o sistema faz no lugar disso é construir uma série de novas significações para empreendedor, entre elas quaisquer enfrentamentos na vida que envolvam risco e autossuperação vira automaticamente ação empreendedora. Com isso tentam igualar romanticamente o camelô que vende bala numa luta hercúlea pela sobrevivência com um Elon Musk, cuja herança o permite investir nas mais diversas experimentações globais e interplanetárias.

Casos como o dos camelôs não são empreendedorismo, são luta pela sobrevivência mesmo em um país que não promove o mínimo de direitos civis dignos pra seus cidadãos. Por sua vez o empreendedorismo como construção social pode nascer de um pacto social importante: investimentos pesados do Estado em P&D, valorização dos polos de desenvolvimento tecnológico e de desenvolvimento social, fortalecimento da educação de base garantindo o olhar mais realista e humanista sobre o Brasil e estrutura social digna para que o povo tenha tempo de estudar e se desenvolver.

É necessário que entendamos de vez que os grandes e famosos empreendedores do mundo não foram pessoas avulsas, mas sim pessoas que conseguiram articular uma gama de sorte e possibilidades em torno de si e que seus grandes empreendimentos nunca teriam saído sem a lapidação e suor de muita gente, dos faxineiros das empresas até o presidente da república de alguns países. No fim, o empreendedorismo mesmo é consequência de uma ação coletiva de sociedade disfarçada de uma ação individual refletida em uma liderança.

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Precisamos amar e ser temidos!

A disputa pelo simbólico não vai construir sozinha a saída da crise nacional.

Ontem caminhando na rua tive o prazer de conhecer uma música gospel cuja letra dizia:

“Não toque nos profetas do senhor
E nem fale mal do seu ministério
Pois quem toca nos ungidos do senhor
Pode acabar no cemitério”

Por um lado, as forças à esquerda se encastelaram e se auto fagocitar nos mesmos espaços de militância que quase não tem representação e vivem sendo disputadas a ferro e fogo por burocratas. Por outro, as forças mais conservadoras avançaram bruscamente por anos e anos em estruturas capilares de comunicação e contato popular (rádios, TVs, jornais, centros cívicos e de sociabilidade, etc).

Na disputa simbólica nacional, a hegemonia sempre esteve com os lados mais conservadores. A visão que o povo tem de comunismo por exemplo foi bem definida nas escolas militares da ditadura e disseminada pelos mais diversos meios de comunicação de massa. Esta mesma visão muitas vezes pauta inclusive os movimentos de esquerda (liberais e comunistas) que assumem para si um conjunto de signos identitários comunistas estereotipados pelas forças conservadoras, e assumem de forma acrítica quaisquer narrativas.

As forças mais conservadoras avançaram bruscamente por anos e anos em estruturas capilares de comunicação e contato popular (rádios, TVs, jornais, centros cívicos e de sociabilidade etc.). Por um lado, as forças à esquerda se encastelaram e se auto fagocitam nos mesmos espaços de militância que quase não tem mais representação embora vivam sendo disputadas a ferro e fogo por burocratas.

Lembremos, o Brasil é um país sem um projeto nacional de educação de base e que nunca construiu uma lógica de pensamento livre e crítico a partir das massas populares. Somos um dos países da América Latina que menos lê e que menos entende de sua própria história.

Armas no Brasil não estão conectadas a um desejo de direito civil como nos EUA, a guerras internacionais ou a morte, elas se conectam com o senso comum pelo sentido de proteção e defesa individual e familiar. Seja a proteção que se crê pela institucionalidade das forças militares, seja no sentido de defesa pessoal ou até mesmo conquista de status e poder. O militarismo (em todas as suas vertentes, inclusive a paramilitar) é uma das principais portas de seguridade social e ascensão dos mais pobres.

Por estas brechas, o conservadorismo construiu sua narrativa em meio a degradação de todos os sistemas públicos existentes. Hospitais não funcionam, educação precarizada, previdência social derretida, mas o militarismo segue firme e forte. Nossa base material frágil garante aos grupamentos armados este tipo de poder.  É preciso uma compreensão extra! As discussões antiviolência não funcionam tão bem no Brasil contemporâneo, por ser um país onde parte gigante do seu povo relativiza a violência. Esta já nos é familiar.

A eleição do Bolsonaro foi um banho de água fria em quem acreditava que o povo poderia escolher livros ao invés de armas. Como fazer tal escolha em um país onde o prazer da leitura é escasso e vemos fuzis em cada esquina? Por mais que pareça insano, percebemos que boa parte dos brasileiros não se importa com o aumento do armamentismo. Precisamos entender que tal discurso é dizer que devemos escolher entre aquilo que a maioria nunca teve um acesso decente com algo que lhes é tão familiar que já não temem.

O Deus cristão é também o Deus da espada, que levará ao cemitério quem tocar no ungido dele. Esta narrativa ganha espaço no povo que vive a materialidade de um país onde a violência se tornou naturalizada no dia a dia. Não será fugindo da realidade que vamos fazer renascer o Brasil, precisamos sim elevar nossa discussão de projeto de nação para além disso. Vocês têm armas? Ok, nós não teremos medo de encarar vocês de peito aberto e na mão! Vamos com a cara e a coragem reconstruir tudo que der para reconstruir do chão deste povo.

Ano a ano a esquerda taxou tudo e todos que eram sua oposição como fascistas, ao mesmo tempo em que governava lado a lado com o ovo da serpente (Crivelas e IURDs, Pastor Everaldo, os muitos acordos e composições com a escória política nas cidades de interior). Fazemos campanha estereotipada de fascismo neste país onde sequer estudamos a fundo o que foi o momento histórico e o levante das forças fascio. Soma-se a isso o fato de que o Brasil é um país onde os micros fascismos habitam emaranhados na sociedade.

Se ilude quem acredita que as eleições vão resolver o país, que simplesmente recuperar o controle do governo vai resolver. Se ilude também quem crê que o maniqueísmo sobre o armamentismo vai angariar votos. Esta eleição está fadada ao risco da incredulidade, perdeu-se o bonde da história quando a indignação popular que começava a crescer nas ruas diante do desarranjo na lida com a pandemia foi silenciado em nome de um: Tiraremos Bolsonaro nas urnas. Agora as urnas chegaram e as ruas estão vazias. Vivemos o volume morto da despolitização e da confusão entre fazer marketing e fazer política.

Entendam de uma vez: o grosso do povo brasileiro não gosta de políticos frágeis, o povo espera alguém que tenha peito e coragem de enfrentar. Este marketing o Bolsonaro faz, por mais que ele seja um covarde e um incapaz de gerir qualquer coisa (como bem se mostrou seu mandato) se vende como o ex-militar capacitado de acabar com a corrupção do centrão. Porém sua demagogia caiu por terra, a corrupção está aí e nada foi construído neste país além dela.

Aqui cabe aquele chavão máximo de Maquiavel: ser amado ou ser temido? E a resposta que acredito para tal: Sejamos amados por quem tiver a fim de nos amar, estes que venham conosco, mas acima de tudo sejamos temidos pelo bolsonarismo!

O bolsonarismo e o conservadorismo tolera em parte os indivíduos que compõem as minorias, mas temem a capacidade destas se organizarem. Não importa se gostamos ou não do Lula, do PT, do PSDB, de quem quer que seja, o que nos importa é: Ninguém mais vai poder se sentir corajoso de meter o bico do fuzil apontado para quaisquer de nós que sejam, porque a organização a partir de agora tem que ser temida. O medo que a classe média começa a sentir nesta eleição já é vivido por qualquer um que milita e faz campanha nos subúrbios, baixadas, periferias deste país a muito tempo.

A discussão não é mais a identidade, a representação ou o levante do protagonismo por dentro do sistema. A pauta principal é resolver as arestas materiais que trazem mais sofrimento, dificuldade de emprego e renda, dificuldade de se manter estudando, discrepâncias salariais, entre outros.

O povo tem fome, não tem mais tempo de ter medo, então fica o recado aos que militam, mas nunca passaram fome: não tenhamos medo! Nada gera mais pânico ao bolsonarismo (em todas as suas faces) do que um povo que encara esta escória miliciana. O bolsonarismo já está pronto para ir as ruas questionar as urnas, e as massas de esquerda farão o que? Seguirão encasteladas em seus aparelhos na esperança e fiança de um judiciário que só tem legitimidade para meia dúzia da classe média e da elite?

O que o Brasil precisa mesmo é aposentar estes modelos de disputa e se debruçar na construção social do seu projeto de país inserido no mundo. Precisamos redesenhar o nosso campo produtivo, fomentar um projeto factível de reestruturação da infraestrutura material: indústrias, logísticas, manejo ambiental, habitação de massa repensada pelo direito a morar e não pela financeirização, criar mecanismos de combate à fome e miséria e remontar a educação de base para que me 12 anos tenhamos uma nova geração forte e capaz de produzir uma sociedade muito melhor.

Segue sendo nossa maior vergonha termos um sistema educacional onde: aos mais pobres é destinado a degradação do sistema de educação pública, a classe média em geral seguirá as escolas privadas de ensino também frágil, mas com lógica de clube e festa para se manterem atraentes para os estudantes e meia dúzia de escolas de ponta onde serão formados os filhos da elite desta nação. Tentamos debater democracia sem sequer sairmos completamente da visão de mundo aristocrática. Uma educação emancipadora e revolucionária seria aquela capaz de dar ao povo as ferramentas de construção e sistematização de saberes científicos e de gerar crítica concreta.

Este Brasil só é possível de construir a partir da ampla organização popular, algo que perdure para além das disputas dadas. Muitos ungidos do Senhor estão neste momento passando fome e sofrendo das mesmas violências cotidianas que os LGBTQ+ ou os povos originários, enquanto o Bolsonaro e seus asseclas comem picanha a R$1799,00 mil e setecentos e noventa e nove reais o quilo, nada diferente do que Cabral estava consumindo na cadeia.

Não nos iludamos! Não há saída possível sem passarmos pela retomada das ruas, independente do que as ruas construam, e por um trabalho árduo que caminhe para além dos processos eleitorais, isso é o que impõe o medo e o respeito diante dos poderes dados. O povo em sua incógnita de descrença que segue tentando encontrar os caminhos para a melhora material de suas vidas não é mais um alienado ou um agente passivo ao que está dado.

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O BROP entre o comunitarismo e a especulação

Na noite da última segunda feira, no auditório da UNISUAM em Bonsucesso ocorreu uma Audiência Pública Territorial da Comissão Especial do Plano Diretor. Como eixo principal destacou-se o que estava sendo pensado para a Zona da Leopoldina, mais especificamente a região que abarca de Manguinhos até a Penha.

O triste destaque se deve a uma apresentação extremamente focada em um tipo de modelagem de uso do solo para verticalização imobiliária disfarçada de adensamento. Entre os principais equívocos que foram apontados, destaco algumas questões fundamentais que nos são extremamente caras ao lugar e à qualidade de vida de todos os cidadãos, não foram sequer pinceladas pelo poder público, questões como mobilidade, áreas livres, arborização, entre outros.

É um erro absurdo acreditar que aumento de gabarito por si só significa reestruturar bairros. Ficou claro nas falas da população a saturação e reais problemas que esta, que reside, sofre. Chega a ser um pensamento antiurbano acreditar que se resolve a cidade apenas aumentando oferta construtiva. O gabarito legal permitido na região hoje já é alto e ainda assim nunca fora alcançado.

Para entendermos o motivo, precisamos assumir a cidade real: A região debatida sofreu um imenso esvaziamento por inúmeros processos mal resolvidos de planejamento, desde a escolha do território como território industrial num dado momento histórico até o processo de desindustrialização da cidade e o crescimento da especulação imobiliária para a Barra da Tijuca e Jacarepaguá, entre mil outros fatores, promoveu o esvaziamento local. Ao longo de décadas houveram discrepâncias absurdas de investimento público na cidade, vendeu-se por anos que os subúrbios, em especial a Zona Norte e Oeste AP3 e AP5, são lugares ruins para se morar. Ser cool no Rio, desde a década de 50 é morar na Zona Sul, curtir a cultura da Zona Sul, parar nos pólos gastronômicos da Zona Sul.

Nos últimos anos, além de obras extremamente equivocadas e de qualidade duvidosa, complementou a degradação destes espaços que perderam pólos de cultura e lazer, árvores, praças entre outros.

Temos de ter em mente que, o que atrai população, tensiona a demanda por moradia e por sua vez atrai o mercado imobiliário, é a garantia de um lugar infraestruturado e com interesse de lazer-cultura-educação-segurança. É uma anacronia a comparação da Zona da Leopoldina com a região da Zona Sul na qualidade de afirmar que: a verticalização que torna a Zona Sul agradável.

O interesse da sociedade em morar na Zona Sul foi construído a partir de suas belezas naturais, paisagísticas, valores de cultura e sociedade e de sua qualidade urbana e de um bombardeio de propaganda simbólica que vendeu a Zona Sul como o lugar certo de ser carioca. Esta por sua vez tensionou o Estado a infraestruturar a região, urbanizando-a, precisou deste conjunto de operações para que o processo de verticalização acontecesse, de maneira a atender a forte demanda por moradia na região. Mesmo em Copacabana, um dos bairros mais verticais e densos da cidade, só perdeu sua última casa baixa da orla no ano de 2013. É importante demarcar estas informações para a compreensão de que a verticalização só se completou na orla de Copacabanda a partir deste ano citado.

Pergunto eu:

O que levaria quaisquer pessoas a morar em um apartamento de 50m² de frente para a Avenida Brasil? O que levaria estas pessoas a não comprar seu imóvel em outro lugar da cidade, visto que os preços tenderiam a ser competitivos ou até mais atrativos?

Não digo com isso que devemos ficar presos num bucolismo de tempos pretéritos, mas é preciso compreender o básico do espaço real e vivido: sem qualidade urbana e paisagística, sem pertencimento, não se gera interesse e nem desejo de morar. E sem um interesse massivo, não se viabiliza moradia verticalizada com qualidade. Isso é tão basal que o próprio mercado imobiliário compreende como parte de suas estratégias. Assim, é totalmente falso qualquer afirmação de que basta construir um prédio que as pessoas irão naturalmente desejar morar.

Dito isto, não podemos tratar de um Plano Diretor da cidade que simplesmente deixe livre um mega potencial construtivo a beira da avenida brasil sem nenhum parâmetro de organização. Isso é dar uma carta branca a sociedade construir qualquer coisa de forma não planejada. Resumindo o plano nega o próprio objeto de planejar.

O que fica claro é: para gerar interesse do mercado imobiliário na Zona da Leopoldina, desmonta completamente quaisquer requisitos urbanísticos e cria instrumentos de tábula-rasa que favoreça o lucro a partir da quantidade (potencial de construir no terreno), Esta ferramenta pode ser utilizada como moeda de troca para que o mesmo mercado invista com mais qualidade nas áreas Centro-Sul e Barra da Tijuca. Fica claro mais uma vez que o alvo das discussões do Plano Diretor para a região da Leopoldina não é a população, mas a possibilidade de gerar algum interesse para os grandes investidores de terras.

Entre os elementos extremamente arriscados, segue no plano a possibilidade de remembramento de pequenos lotes (que representam a maior parte dos lotes desta região), para a construção de um grande lote. A princípio isso parece algo inocente, mas é muito perigoso em uma região onde a maioria dos lotes não possuem escritura definida corretamente, casas que possuem acréscimo, famílias que construíram no quintal ou no segundo andar da casa dos pais e não fizeram desmembramento. Estamos falando de um território cujos lotes próprios são vulneráveis também.

A materialidade destes projetos onde só o que pesa é imprimir potencial construtivo e liberar aumento de gabarito em vazios urbanos dos bairros gera projetos como já vimos por aí, cito ruas como os empreendimento da Rua Degas, ou o novo lançamento da CURY com entrada direto pela Linha Amarela, sem qualquer relação com entorno ou com impactos diversos do empreendimento no local. O poder público fala em construção de condomínios no mesmo lugar onde o povo claramente pediu saneamento, escolas, ônibus, creches, praças e parques. Precisamos discutir mobilidade decente, áreas de lazer, pontos de cultura, planejamento de arborização, espaços de educação, saúde e cultura. São estes elementos que podem fazer surgir o interesse popular por estes bairros. É sobre isso que o Plano Diretor deve se debruçar, ao invés de repetir erros de um Rio de Janeiro já cansado destes processos imobiliários.

A solução para o BROP ou para a própria Av. Brasil passa primeiramente pelo resgate das relações comunitárias vigentes locais, pela valorização das qualidades e signos importantes dos bairros e pela geração de interesse popular nos mesmos. Bonsucesso é interessante quando o clube de Bonsucesso se torna interessante, quando o mercado é barato, quando as praças estão aptas a vivência e sociabilidade, quando os bares estão com movimento a noite. A Penha será ótimo a medida em que os pólos de lazer tirem partido da paisagem da Igreja, ou o parque shangai seja patrimonializado pelo que representa para aquela região. Assim também é Ramos ou Olaria. Ninguém que mora na URCA seria louco de esconder o cara de cão, ninguém que mora na Zona Sul seria louco de transformar suas praias e calçadões num aterro sanitário, destronar a escultura de Drummond.

Ao construir e consolidar os projetos de estruturação dos bairros, garantir a revitalização deles, valorizar a cultura local, suas construções e associações de bairro e território, compreender as muitas nuances rua a rua, saberemos realmente como lidar com bairros. É preciso termos essa compreensão, estamos falando de Bairros, com história, memória, simbolismos mil e infraestrutura e não de terra a avulsa. Quem nesta cidade ainda fala de terra avulsa disfarçado de falar de cidade em geral é especulador formal, grileiro ou miliciano.

As grandes glebas abandonadas da Avenida Brasil precisariam, antes de receber um empreendimento de qualquer porte imobiliário, de investimentos urbanos e urbanísticos. Isso é um mínimo dos mínimos. Por que não pensar o Centro Expandido como se pensa os PEUs ou como se pensou o Reviver Centro? Por que a prefeitura precisa de uma tal Zona Franca Urbana que não diz exatamente a que veio?  Estas são questões que precisam ser respondidas com muita urgência, antes que nada sobre para se chamar de bairro nesta cidade do Rio de Janeiro.

Qualquer pessoa que vê o resultado da Transcarioca, do Porto Maravilha, das obras abandonadas do entorno do Maracanã, enxerga exatamente do que se trata o modus operandi desta prefeitura para a cidade. Esta é a cidade real que nos restou.

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Reflexões sobre uma economia industrial em um mundo caótico

Em meio a inúmeros alertas da ONU e enfrentando uma pandemia que cobrou da humanidade a capacidade de parar o giro do sistema para se recompor, o sistema global permaneceu tentando remendar a si mesmo. Passando-se dois anos de pandemia, a escolha dos grandes operadores dos modos de produção foi por manter a roda da economia como conhecemos em pleno movimento, apesar de todas as limitações e embaçamentos que podem causar catástrofes ainda maiores. Assumimos esta escolha política, mesmo distante das inúmeras disputas.

Estamos, enquanto espécie, diante de um flanco. Enfrentamos uma necessidade urgente de ruptura do paradigma atual que, diferente dos processos de mudança do iluminismo ou do modernismo, não passa por signos de busca de evolução da humanidade, mas sim pela própria necessidade de sobrevivência dela. Assim, nos resta a certeza de que não temos mais tempo de experimentações sem encarar os riscos de para onde a trajetória econômica está nos levando. Diante disso fica a pergunta: Como repactuar a economia global diante do dilema ambiental? Essa pergunta precisa de uma resposta aplicada em larga escala urgentemente.

Dentro deste dilema trago um recorte para reflexão: Os atuais avanços do mundo industrial já nos permitem gerar novos modelos que podem colaborar com a busca deste novo paradigma. O discurso vigente do sistema capitalista, que centra a produção em lucro, competitividade e propriedade do conhecimento (patentes, copyright, P&D) como fomentadores de uma sociedade mais eficiente já não cabe mais. Foi justamente dentro deste raciocínio que chegamos aonde estamos. Tentamos sobreviver em um planeta que transforma vida em recurso e tudo que toda em produto de consumo.

Por outro lado, o sistema vigente em modelos de produção socialista produzira um nicho de relações burocráticas que tornaram a indústria menos potente em inovação (argumento que é questionável), hoje, com o atual nível de conexão de redes, não precisamos mais nos ater a tal debate. Vamos recortar o que é comum a ambos, a busca da produção e o uso estratégico do modelo industrial para garantir o controle social. Por sua vez, não é mais necessária uma megaprodução de excedentes para otimizar lucros, ou um grande sistema de exploração de força de trabalho braçal para garantir eficiência (como defendiam/defendem alguns).

Podemos criar redes de automação capazes de inferir na produção dentro de melhor racionalidade de demanda, interesse, uso, capacidade produtiva e capacidade destrutiva. Podemos integrar todos os instrumentos de produção e logística globais em redes de possibilidades capazes de monitorar em tempo real a necessidade de produção, reduzir custos, reduzir desperdícios e excedentes que viram lixo. Com o Big DATA podemos tornar os ecossistemas de produção industrial mais flexíveis e ajustados a demandas globais.

Um exemplo alegórico: O aumento expressivo do consumo de um determinado remédio destinado a uma doença contagiosa em uma cidade pode dar indícios de um possível surto, apontar para a rede industrial a necessidade de se produzir mais deste remédio para esta cidade ou deslocar de um lugar com pouca necessidade deste remédio. Esta indústria pode dar indícios a rede de indústrias de motores sobre a necessidade de produzir certo tipo de transporte para garantir a logística de mobilidade para aquela região e por aí vai. Uma reação em cadeia que ligue ponta a ponta: consumo e produção conforme diagnóstico em tempo real das problemáticas e potencialidades de atendimento das demandas.

Cada vez mais, o ato de implementar uma indústria envolve também pensar nas relações urbanas, paisagísticas, naturais de onde esta se insere. O modus operandi de um planeta rateado pelos setores econômicos que garantem a eterna repetição dos mesmos ciclos de centro-periferia global. Da mesma forma devemos pensar se ainda se torna necessário investir energia na produção constante de veículos automotores individuais por exemplo.

Precisamos rever urgentemente a relação do lucro e propriedade relacionados a produção industrial. Não cabe mais, em um mundo complexo, pensar o grande campo industrial como um sistema de proprietários de capital e relações de poder e disputas privadas. Não cabe mais a produção seguir com base em excedentes de necessidade duvidosa para girar uma economia desvinculada dos impactos ambientais e das reais demandas da sociedade. Com um olhar atento sobre a produção globalizada e internacionalizada seríamos capazes de economizar tempo e material, baratear a produção a partir da logística de produtos sob demanda, ao invés de repetir o padrão de barateamento gerado por uma megaprodução de excedentes.

Podemos portanto, reinserir a produção dentro de um sistema ampliado de organização social. Atualmente podemos gerir complexos industriais através de bigDATA de forma a garantir maior eficiência nos processos. Porém, precisamos de um ciclo ampliado constante de gestão política e governança, que englobe sociedade civil, sindicatos, ambientes comunitários, parlamento, entre outros.

É preciso pensar uma estrutura social que viabilize a redução da jornada de trabalho sem a redução dos salários. Precisamos considerar as ferramentas que o capital apresenta, podemos por exemplo redefinir a produção do lucro do capital financeiro, cujo principal alvo é a geração de renda e crédito através da confiança. O lucro segue como conhecemos, sendo produzido pela capacidade produtiva dos trabalhadores e pelas máquinas de exploração da vida, porém se compõe via capital financeiro, de forma indireta a isso. É preciso repactuar a renda, pois a realidade é que teremos uma massa de desempregados ou de subempregados muito maior do que a que existe hoje. Esta massa por sua vez é parte significativa na produção da mais valia, ao mesmo tempo em que é potencial consumidor.

O sistema de lucros deve ser reorganizado e costurado. Ao invés da produção de bilionários, a industrialização global, automatizada e gerida de forma racional pode produzir um sistema universal de redução e mitigação da miséria. Para tal, precisamos reinvestir o lucro gerado em políticas de renovação e proteção social e ambiental. O valor excedente produzido precisa entrar em um ciclo de benefícios locais, ser reinvestido prioritariamente na busca da equidade social em todas as esferas de governança.  Visamos com isso reduzir os danos causados e prevenir que novos danos ocorram. Com o investimento global dos lucros industriais organizados, podemos estruturar bancos de apoio e distribuição da renda, programar e fomentar políticas de pesquisa e desenvolvimento que se fundamentem prioritariamente na constante ação em rede.

Pesquisa e desenvolvimento é um trabalho global e colaborativo. É um equívoco seguirmos crendo ainda nos modelos míticos da grande genialidade. Precisamos Consolidar as redes de possibilidades dos encontros. Quanto mais integrados estamos, melhor é a eficiência e racionalidade de ações que planejamos.

O que deve se tornar predominante e paradigmático acima do lucro, é o impacto de preservação e recuperação ambiental do entorno, seja natural ou construído. Neste sentido, a partilha pode ser peça importante para organizar o novo modelo de operação industrial, focando na cooperação internacional, na racionalização da logística de transporte dos bens de consumo e de transporte das matérias primas muito mais que na concorrência. O planeta não suporta mais nossa organização social modernista, essa é a triste realidade, precisamos urgentemente mudar as rodas de funcionamento do planeta, o tempo é pouco.

O mundo é propício a receber qualquer pequeno impacto no ecossistema e vai nos cobrar. Já demos alguns passos culturalmente.  Aumenta o número de cidadãos, para quem, a existência passa pela experiência do mundo e não mais pelo controle de posses. Precisamos reforçar estes modelos se quisermos seguir vivendo neste planeta.

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Fragmentos de uma luta de classes carioca

A ideia de uma identidade carioca, ou uma carioquisse, surge de um recorte específico e estereotipado da cidade do Rio. Esta que já foi capital nacional e viveu anos de pujança. Esta identidade a meu ver se demarcou por um recorte geográfico muito bem definido, a escolha de uma vertente de espraiamento e especulação voltada à burguesia e as elites tanto cariocas quanto nacionais.

Assim, criou-se a imagem de Rio de Janeiro voltada ao eixo Zona Sul da cidade. O próprio termo Zona Sul nasce deste processo de autossegregação (há pesquisas muito importantes que explicam melhor esse momento). O lugar do carioca nesta construção se divide pelo seu recorte de classe. Para a burguesia e todos os que podem pagar, destinou-se o eixo de crescimento situado entre o oceano e os maciços, e para o restante da população destinou-se dos maciços ao interior do continente (simplificando o recorte).

Neste sentido, podemos entender que, se por um lado o capital cultural, simbólico, narrativo da cidade que vence historicamente como verdade de representação foi forjado em uma parte desta (mesmo que capturando diversos elementos da cidade como um todo), ao outro lado, ficou o relento de fazer sua própria história, porém sem que esta esteja na oficialidade das narrativas, exceto quando domesticada pelos que escrevem e tem voz.

A complexidade do Rio é que sua construção cultural/territorial não é dicotômica, há nuances das mais diversas que surgem no intraurbano. Entre as muitas nuances vou destacar 3 grandes topônimos: O Rio (retratado pelo eixo centro-sul estendendo-se a Barra da Tijuca e Recreio), Os Subúrbios (retratados pelas Zonas Norte e Oeste excluindo-se Barra e Recreio), as Favelas (retratado por lugares de ocupação não formal que se encontram pulverizados pela cidade como um todo).

As favelas sempre foram denotadas como o lugar que deve ser expurgado, desde termos como área de risco, até o estigma de território da violência, a favela é o território onde o Estado tem liberdade garantida pela opinião pública para executar o que quiser, independente das leis. As favelas resistem a morte, a remoção, a ausência (ou presença torta) do Estado e a presença das disputas mais viscerais de poder e espólio sobre o direito a vida.

Os subúrbios por sua vez, expressam um sombreamento difuso. São territórios legalizados, em geral propriedades privadas destinadas aos mais diversos tipos de pobres que, em algum momento da vida tiveram condições de adquirir um bem, um imóvel.  Ainda que muitas vezes, tenhamos bairros tão ou mais pobres que algumas favelas, há um caráter de origem formal no território. Além de formal, há uma relação de distinção e heterogeneidade na constituição dos mesmos.

Assim como não podemos dizer que o tratamento dado ao Vidigal é o mesmo dado ao Cesarão, também não podemos dizer que o tratamento dado ao Méier é o mesmo dado a Honório Gurgel. E são justamente nestas disparidades que a busca de uma certa identidade se torna limitada. O que unifica as lutas das favelas, antes de uma identidade favelada e periférica, é a disputa de classe, o desejo de que a máquina do poder pare de matar os moradores deste lugar. Para os subúrbios esta discussão é mais complicada, pois não há por parte do Estado um ataque claro aos territórios. A PM não passa da mesma forma nas ruas da Vila da Penha como passa nas ruas de Costa Barros, por exemplo. Este tipo de relação torna complicado a construção de um sentido comum e de elementos de igualdade entre os dois bairros (base para a construção de sentido de identidade).

É com base nisso que temos que lidar na hora de produzir nossa história e nossas lutas. Uma identidade suburbana, a meu ver é cada vez mais inviável de se constituir sem que a mesma se reduza a um estereótipo domesticado, um Zé Carioca contemporâneo, um Zé Pelintra que anda pela Lapa pra tentar chamar a atenção de gringos. O que precisamos compreender é a construção de uma emanação de enfrentamento de subúrbios e favelas como agentes de lutas, uma emanação do vir a ser pobre que reconhece na sua condição de vida o impacto que a segregação social, econômica e territorial lhe impõe. Sob este reconhecimento que seremos capazes de entender o que leva um jovem branco morador de um bairro pobre hegemonicamente negro a ser visto pelas forças do poder como um jovem também negro quando está no seu bairro.

Esta segregação invisibiliza sua voz, deforma seu bairro em nome da especulação imobiliária descolada do cotidiano, mata quaisquer infraestruturas como transporte, hospitais, escolas, etc. Ela implode os saberes e fazeres do povo, apaga sua paisagem, seu patrimônio construído, e sua história. O pobre não tem acesso à cidade como um todo, sem que seja questionado. Ainda que alguns tenham conseguido romper certas brechas e ganharam espaços de fala, o discurso hegemônico ainda é domesticado. Não se modifica a estrutura, mas se constrói um equipamento x ou uma apropriação cultural y e isso é vendido como uma solução. Criamos um pólo gastronômico em um bairro qualquer e deixamos o bairro vizinho entregue ao poder paralelo do tráfico, milícia e igreja unificados.

Não importa as forças que estão no poder, a base de constituição delas nasce da burguesia que pouco conhece os espaços segregados e invisíveis da cidade. Somos governados e geridos (seja pelo público ou pelo privado) por grupos e forças cuja origem está no mais elitizado dos espaços, nas universidades de ponta, nas escolas de ponta, onde muitos dos mais pobres nunca pisaram, pois precisam enfrentar uma luta hercúlea pela sobrevivência desde cedo. Quem é pobre não tem tempo de estacionar o carro no Leblon às dez da manhã de segunda-feira, não tem tempo de dar opinião em jornais de grande circulação ou de passar o dia bebendo uísque a beira da praia como forma de compor um grande sucesso nacional.

Por isso e outras mais, nossa luta não pode ser apenas uma disputa de identidades, pois a identidade carioca já está formada e dentro dela, o pobre já tem seu lugar definido e estereotipado. Nossa luta é um combate de classes, onde o suburbano e periférico veste seu Clóvis. Sob a fantasia está o lazer, a alegria, a dor, a paz e a violência. É com este ferramental de quem, nesta cidade, é realmente capaz de experimentar com tranquilidade as mais doidas contradições da sociedade, sem cair no maniqueísmo raso das intempéries, que teremos de buscar nossa alternativa para não sucumbir.

Turma do Indio 2017 – Guadalupe – imagem de Vincent Rosenblatt
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Brasil um país cujo projeto de vida é não ter projeto nenhum

Desde que a humanidade tomou consciência de si e constituiu sociedade que ela tem de lidar com os mais difíceis desafios da natureza. Construindo ferramental prático, técnico, teórico e científico para resistir e construir seus espaços de garantia de bem viver.

Impressiona como um país como o Brasil sucumbiu a um projeto de existência terminal, tornando-se incapaz de enfrentar quaisquer questões mais severas. Em mais de 500 anos de história de ocupação colonizadora, e milhares de anos de ocupação do território pela humanidade, nossa história é marcada pelo constante achatamento da produção científica e técnica e do conhecimento como um todo. Ensino de qualidade sempre foi um projeto excludente no país, as pouquíssimas tentativas de formação de educação de base com qualidade e democrática foram rapidamente arrasadas, tão logo tentava-se instituir. Esta construção de nação dá o tom da nossa sociedade, um país com projetos rasos e efêmeros, que pouco valoriza a capacidade técnica e que entrega a sorte e ao destino todos os seus.

A destruição de Petrópolis, uma das cidades símbolo da história deste país, se torna mais um capítulo desta tragédia chamada Brasil. Não há surpresa no acontecido, a real é que há negligência histórica em lidar com a necessidade de se planejar. A tragédia é o desfecho de uma lógica que atravessa todo o sistema do campo da construção deste país. Embora seja um dos campos de trabalho e mercado que são estratégicos para o giro da economia, ele sempre opera de forma leviana. Preferimos construir estádios a hospitais, preferimos construir megamuseus a sistemas de saneamento, preferimos entregar o valor da terra por aumento de gabarito a respeitar limites ambientais frágeis. Esta é a cara das obras e da gestão pública neste lugar.

A política educacional, nossa principal chave de mudança está também destruída. Escolas funcionam como depósitos de jovens sem perspectiva. O sistema de universidades se tornou mera ferramenta de arrecadação financeira para grandes corporações e formação de mão de obra pouco reflexiva, isso em um país que é incapaz de absorver sequer um terço desta mão de obra formada. São décadas em que o projeto é achatar a produção de conhecimento, um projeto que se dá com mudanças gradativas.

Para piorar o caso, quaisquer forças progressistas atualmente organizadas se tornaram meros agentes de reação a tudo que surge, sem que se construa alternativas de saída. Tudo se resume a marketing e estratégia furada, o que também é um reflexo claro de um povo que pouco lê, que pouco consegue estudar e trabalhar por si mesmo a crítica, a reflexão e a produção de ideias. Não basta ao país apenas consumir, andar de avião, ter geladeira, ter televisão, precisamos de um país que saiba construir isso tudo, que saiba produzir tecnologias de defesa, que saiba monitorar tecnicamente os riscos de tragédia, entre outros.

Vivemos no desespero, em uma espécie de deixa acontecer e vamos ficando aqui. O Brasil na real não vive mais, apenas segue existindo enquanto respira. Este desespero que produz o crescimento das mais diversas formas de fé, de crença, de busca messiânica e equivocada de uma saída ou uma fuga.

Consta que, para sairmos deste abismo nacional, precisaríamos de um trabalho de longos anos. Precisaríamos recuperar os esforços em um projeto de educação concreto que garanta a nós formação suficiente para lidar com o revés do mundo. E um primeiro passo precisa ser tomado, a construção de um desejo de Nação, de nos entendermos como um povo onde um são todos, onde um cidadão não é problema só de si mesmo, mas um problema da cidade. Em resumo, precisaremos reconstruir o sentido coletivo da vida, o sentido político dela.

Temos de enfrentar fortemente a inércia que a tábula rasa dos 4 anos eleitorais coloca. Precisamos consolidar um olhar científico e técnico integrado, romper com o viés corporativo e particionado do indivíduo em si mesmo, do profissional em si mesmo, do saber como uma caixa cartesiana. Precisamos recuperar a costura e o sentido da função social do nosso trabalho e explodir os sistemas de captura financeira da vida. Não dá mais para aceitar cidades definidas e geridas com base em especulação financeira da terra, não dá mais para pensar hospitais geridos por quem vende nossa saúde a preço de banana, não dá mais para pensar a produção alimentar com base no lucro que posso ter com a fome do povo. Sem um olhar integral da vida, não sairemos desta lógica de ser um país cujo único projeto parece ser o de se tornar uma fazenda para o mundo onde poucas famílias fazem fortuna às custas da miséria de todos.

Petrópolis, Brumadinho, Morro do Bumba, Chuvas de 86, a história do nosso fracasso social segue cíclica.

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Moise

É mais que notório e inegável que vivemos um país racista. O assassinato a sangue frio do jovem congolês que buscou no Brasil um caminho de esperança e como tantos periféricos caiu no ciclo de morar em uma favela dos subúrbios e trabalhar em um bairro da centralidade retrata a imensa fragilidade do que temos construído até aqui.

Simplesmente, independente das inúmeras tentativas, nenhuma política pensada neste país até hoje reduziu ou mitigou a guerra aos pobres e a guerra aos povos negros. Nenhuma organizou economicamente e socialmente o fim deste ciclo histórico do mundo que faz transbordar até hoje a mesma violência que assolou a diáspora dos povos africanos somada a violência que os segue assolando em dias contemporâneos.

O sistema miliciano que matou o jovem Moïse Kabagambe a sangue frio e com doses colossais de sociopatia, é da mesma lógica de controle social que hoje ocupa seu país em guerras étnicas sem fim. Mesmo que haja um abismo entre os tipos de conflitos, há pouca diferença no uso tático das forças do capital entre este modelo que gere (pelo poder da violência) os territórios no Brasil, dos modelos organizacionais de clãs que ainda hoje se disputam nos territórios africanos.

Há em ambos a face da violência material, exposta pela pobreza, pela desigualdade de oportunidades, pela fome, somados a violências simbólicas com a impregnação no imaginário de que o corpo negro é o outro, o não familiar (ainda que ocupe massivamente o território).

O estado de guerra traçado permanece porque movimenta poder e dinheiro. Você consegue especular sobre terrenos, vender armas, vender a salvação eterna e divina aos que não tem muita esperança, criar lugares nas cidades mais valorizados (por haver lugares menos valorizados), consegue consolidar garimpos de extração de minérios em territórios controlados por um clã, entre muitos outros exemplos de como explorar estas relações de controle sócio-espacial.

Nkrumah fora a sua época inteligente ao notar que no seu território específico era necessário romper com elementos do conceito étnico para resistir a este outro que se utilizada destas disputas para manutenção da colônia. Para K. Nkrumah não era central uma linguagem ou cultura unificada, mas sim a construção de uma unidade em torno de uma construção comunitária da vida, a saída não partiria necessariamente pelos iguais cristalizados em seus laços étnicos e identidades imutáveis. A proposta passaria a ser uma nova composição, uma identidade que parte do desejo de libertação e emancipação dos povos africanos.

Moïse, congolês, fugido das guerras e da fome, negro, trabalhador, morador de Brás de Pina, foi assassinado ao tentar receber seu salário. Moïse foi morto em um país que usa de toda força e conhecimento dos povos negros na mesma medida em que os chacina diariamente em operações policiais sem fundamentação, afinal, o carro da PM passa diferente em Costa Barros e na Barra da Tijuca. Esta mesma PM onde corpos negros também são treinados pra matar e morrer a esmo em uma mesma Costa Barros onde corpos brancos também podem ser lidos como corpos negros diante do bico de um fuzil que passa apontado pra fora da Patamo.

Este é um crime que não pode ser silenciado, não pode ser abafado e nem resumido em uma bandeira ou símbolo de ato, é um crime que precisará ser devidamente punido. Assim também, é um crime que acende o alerta vermelho para esta cidade em que estamos! O Estado miliciano não se refere apenas as forças do poder armado que se organizam, junta-se a isso a cultura que se constrói em torno do punitivismo e justiçamento e sob o qual vamos nos habituando. Não vamos sair desta miséria de situação se não traçarmos urgentemente lutas que busquem verdadeiramente o desejo e o trabalho em torno da emancipação e libertação do povo mais pobre como um todo.

Congo, um país cujo PIB é de 10 bilhões de dólares, aproximadamente uns 5% da fortuna de Elon Musk perdeu no Brasil um dos seus filhos.

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Sobre a complexidade dos Subúrbios segregados

Desde a mudança da organização administrativa da cidade do Rio que dividiu a cidade por Áreas de Planejamento e Regiões Administrativas e as legislações vigentes se deram rua a rua, o termo Subúrbio não cabe na lógica formal do planejamento e da administração pública. Ele porém segue pairando no ar como uma enunciação coletiva.

A cidade segregada se deu durante anos por conta de expropriação de tributos de determinadas zonas da cidade e de uma escolha clara de como se daria a distribuição espacial deste território. Assim, as administrações vigentes atuaram de modo a privilegiar um lado específico que seria destinado aos mais ricos e grande parte da classe média. Expropriação esta, que por sua vez nunca foi corrigida por nenhum governo.

Hoje, a melhor expressão de Subúrbios é muito menos territorial e muito mais sob modos de fazer do povo. A construção de laços dos mais diversos. Parte da sociedade organizada em torno desta enunciação busca um caminho de costura e reconstrução do que seria esta identidade. A identidade por sua vez nunca dará conta da complexidade e das dinâmicas populares que giram em torno do sentido de ser ou não ser suburbano no Rio de Janeiro.

Boa parte da pujança e do imaginário se constituiu por algumas políticas de Estado. Escolas públicas, habitação de interesse social, eventos cívicos, o Varguismo teve um papel importante nesta construção. Soma-se a isso a enorme resistência dos povos negros, sempre preteridos e vilipendiados na sociedade, são eles que constroem em seus terreiros, aquilombamentos e barracões o mundo do samba, do funk, da soul music, dos encontros na escassez e da fé. Os Subúrbios são um amálgama disso tudo e muito mais.

Se a relação da cidade formal com a favela é de medo e terror, onde o que separa a favela da cidade formal é que é aceitável pelo sistema o direito do Estado matar na favela e de tratar seus moradores como não cidadãos, nos bairros dos subúrbios que não são considerados favela é dado a invisibilidade e a captura pelo exotismo. Assim, passa ano e sai ano, e cada administração pública usa de uma lógica específica para tentar capturar o discurso e amarrar em torno de uma identidade passível de ser controlada.

As décadas de 70, 80 e 90 levaram os moradores de regiões ditas suburbanas a migrar para uma emergente Barra da Tijuca onde os modos de vida e cultura deste novo modelo de cidade eram vendidos diariamente. Quem viveu estes anos se lembrará de como era matéria dos principais programas de estilo de vida as idas de jogadores e artistas a churrascarias e restaurantes, como era legal o jogador de futebol faltar o treino pra bater um futvolei na praia e muitas outras referências. Enquanto isso, no território onde muitas destes nasceram e se iniciaram, o que vingava eram os bailes. Dentre eles, um modelo ganhou força e ajudou ainda mais a segregar a cidade, os Bailes de Corredor. Os Bailes de Corredor mudaram muito a forma como o adolescente curtia a festa e vivia a própria cidade, pois alimentava um bairrismo combativo. Em pouco tempo, jovens passaram a frequentar festas de outros bairros apenas no intento da disputa.

A beira disso, também nestes anos, explodem o modelo evangélico neo-petencostal Macedos e Malafaias como grandes expoentes, mas este modelo não pode ter essa leitura simplista. O neopetencostalismo opera muito menos por meio do texto escrito, de uma liturgia organizada e centralizada, e muito mais pela experiência pessoal de transcendência. A forma de fé cresce por sua simplicidade organizativa, basta uma liderança capaz de produzir contato com o transcendente e ali poderia se fazer um círculo de oração, um ponto ou até mesmo uma igreja.

Ao definir o adversário a partir de qualquer um que não professe a fé, o petencostes por sua vez acaba que promove um movimento silencioso e silenciador. O fiel não deve se misturar ao mundo, deve produzir a si mesmo e estar junto com os seus (a igreja) num laço de santidade. Para o neopetencostal, o outro tende a ser um desagregado que leva a vida influenciada pelo adversário. A situação piora diante de outras crenças, em especial as crenças de matriz africana, onde aí sim quem as professa é visto como um profeta do adversário. Este tipo de signo constrói boa parte do campo de fé suburbano hoje em dia, de fortalecimento social e caminhos de coletividade. Dali levantam-se muitas lideranças, e outras muitas ainda se aproveitam para usar deste sistema como palanque. Mas ainda assim é preciso nos aprofundarmos nas relações e nos sombreamentos, pois uma profetiza neopetencostal em um círculo de oração está muito mais próxima dos modos de viver de uma benzedeira ou mãe de santo do que de um Silas Malafaia da vida.

Ainda assim, é curiosa a relação de conflitos que apesar de parecer maniqueísta, muitas das vezes passa por um relativismo. Quantas não são as famílias suburbanas que tem sentado na mesa um filho que trabalha para a polícia (uma das possibilidades de emprego e saída pra vida do pobre) e um filho que vive de dinheiro da contravenção? Mas nossas formas de entender certos signos sempre serão outras.

Quando a gente é pobre pra valer a gente vem forjado na violência, no palavrão, no papo reto, e na ação visceral. Quem tem fome precisa ser visceral pra sobreviver, mas também é solidário. A gente aprende a lidar com os signos de forma diferente, a lidar com o senso de justiça de forma diferente, pq a vida violenta a gente.

A vida violenta quando todos parecem amigos, mas uma mudança simples no recorte de classe deixa claro quem está num ciclo abaixo da pobreza, violenta quando as coisas e lugares que frequentamos são preteridos ou esquecidos na história. É violento quando alguém tem medo do seu lugar, da sua rua, do seu lote. É assim que a gente é criado, isso traz signos pra gente lidar com a vida.

O projeto de poder dos que conseguem gerir o sistema (mega empresas, governos, ricos, investidores, etc) envolve a manutenção de um modelo inspirado em uma certa classe média modelo. Não há um traço político concreto que seja realmente popular e massificado, capaz de interpretar os signos e criar uma política de estado em torno deles. O trabalho feito é capturar tudo que pode, gerenciar as vozes e interlocutores dissonantes por meio de inúmeros sistemas de controle social (como a lei da vadiagem por exemplo).

É assim que por exemplo, não há nenhum projeto significativo de planejamento de recomposição da cidade formal que gere pólos de interesse pra classe média reocupar os subúrbios cariocas. Ao mesmo tempo, há interesse do poder imobiliário (entre outros) em movimentar parte de sua economia nestes territórios hoje bastante esvaziados reconfigurando-o como espaços do modelo padrão de consumo da classe média (a forma condominial apelidado de barra da tijucanização por exemplo).

Por outro viés, parte dos modos de fazer e cultura que tanto manteve o povo vivo em tempos de escassez e do esquecimento político é traduzido e adequado para ser digerido e palatável a parte da classe média que tensiona ou entende o peso da desigualdade. Porém tudo é escolha, exemplos: ao invés de por pra frente uma política de revitalização dos centros de bairro a partir de seus cinemas de rua, a política de cinema de rua escolhe um cinema de um bairro específico, revitaliza e considera este um pelo todo. Assim que tudo é feito, escolhem-se alguns bairros e trazem alguns melhoramentos estruturais coletivos nestes e fazem o um ser a representação do todo.

Não é simples trabalhar com o sentido dos Subúrbios no seu espectro mais complexo sem lermos sob a ótica de suas reais narrativas que são duras. A beleza dos subúrbios está nesse olhar total que passa inclusive pelo que nos parece assustador e gostaríamos de esconder, assim como o Clóvis que pode esconder por trás de sua máscara o mais engraçado ou o mais temido dos seus vizinhos.

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O RAPTO COGNITIVO DA ARQUITETURA AMEAÇA O GUSTAVO CAPANEMA

 A construção de sentido das cidades se dá por experiências materiais e cognitivas que caminham lado a lado conforme define-se o projeto e as disputas sociais inseridas nelas. Há muito que o projeto de bem público no Brasil não é prioritário, e desde sua formação que o projeto de cidade para o Rio é segregado. Por mais belo e simpático que eu seja do conceito de costura, de cerzimento, a resistência não dá conta de resolver o problema real da cidade.

Hoje nos deparamos com mais um possível crime ao patrimônio. Uma lista de inúmeros bens públicos da União (mais de dois mil) que o atual governo pretende simplesmente desfazer, leiloando ao mercado privado. O coração deste debate se debruçou sobre o edifício Gustavo Capanema. Joia da arquitetura moderna mundial, o prédio em si é uma das aulas mais puras do que representava as premissas do modernismo. 


Importa-nos dizer porém que ele não está só o que coabita naquela esplanada é um conjunto de poderes. O Capanema convive com seus vizinhos de poder entre outras edificações que compõem um determinado tempo, uma expressão de sociedade e de povo. Cada edificação a seu modo, com seus estilos, elementos e espaços guarda minutos, dias, anos de história. De nada adianta salvar o MEC e perder o Ministério do Trabalho ou da Fazenda por exemplo.


Este é o Rio de Janeiro, a cidade que desmontou sua colina de fundação, o Morro do Castelo, símbolo de um Brasil Colônia e um Brasil Império, e em seu lugar construiu a Esplanada dos Ministérios de um Brasil Novo. Este é o modelo de urbanismo desta cidade. Assim foi a abertura da Presidente Vargas, assim foi o Porto Maravilha, assim foram as remoções de favelas, algumas partes de PACs e por aí vai. A arquitetura carioca (talvez brasileira) é uma constante de demolir para construir, um eterno retorno mal interpretado, onde no fim o que importa é a terra, o lote. Sobre toda operação há uma bela narrativa para estampar o sucesso nas revistas especializadas: o retrofit, o reinventar, o reviver, -façamos o novo. 


Esta cultura está impregnada no modus operandi dos gestores públicos e de boa parte dos profissionais arquitetos que projetam e constroem esta cidade. Onde nós lemos história, memória e pertencimento, outrem leem uma relação de preço/m² de solo.  E nesta, somos educados e por tabela “educamos” a sociedade de que arquitetura é a tábula rasa (ironicamente pregada pelo modernismo) passar a régua, limpar o terreno e subir do zero. Nesta leva, o senso comum acha bonito um condomínio recém inaugurado cheio de falsas colunas gregas mas trata como velharia um casario art-decó. Este é o rapto cognitivo que vivemos no dia a dia de nossas vidas.  E se há algo que explica muito bem o processo é o poema de Marina Colassanti que colo aqui:


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.


A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.

E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.

E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.

E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma acender mais cedo a luz.

E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.


A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.

A tomar café correndo porque está atrasado.

A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.

A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.

A sair do trabalho porque já é noite.

A cochilar no ônibus porque está cansado.

A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.


A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.

E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos.

E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.


A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.

A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.

A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.


A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.

E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.

E a ganhar menos do que precisa.

E a fazer filas para pagar.

E a pagar mais do que as coisas valem.

E a saber que cada vez pagará mais.

E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.


A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes.

A abrir as revistas e a ver anúncios.

A ligar a televisão e a ver comerciais.

A ir ao cinema e engolir publicidade.

A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.


A gente se acostuma à poluição.

As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.

À luz artificial de ligeiro tremor.

Ao choque que os olhos levam na luz natural.

Às bactérias da água potável.

À contaminação da água do mar.

À lenta morte dos rios.

Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.


A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.

Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.

Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.

Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.

Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.

E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.


A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.

Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.

A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta, de tanto acostumar, se perde de si mesma.

É na singeleza do comum cotidiano que o rapto acontece, e é na segregação que ele tem seu melhor território de experimentação e expansão. O carioca se acostumou a ver seu paisagismo e seu patrimônio histórico se deteriorarem até o último suspiro, que pode vir por um incêndio, ou uma picareta demolidora. 


Nos acostumamos a ver bairros inteiros morrerem administrativamente e ver seus moradores sendo tratados como de segunda categoria, assim como sua cidade construída. Nos acostumamos a perder o direito aos espaços livres, o direito da memória. Nos acostumamos a ver patrimônios históricos serem demolidos por motivo torpe. E o pior, nos acostumamos a não nos importar tanto, quando estas operações são experimentadas nos territórios mais periféricos, como os subúrbios ou as favelas, ou as favelas dos subúrbios. 


Nos acostumamos a aceitar que certas práticas podem acontecer no lado invisibilizado da cidade. Um BRT que não passa mas cuja obra desmantelou o casario de Campinho e toda franja de casas e lojas de bairros inteiros, acabou com praças e parques. Os Cinemas de rua tombados que, com sorte viram igrejas, ou são destombados para virar só fachada de loja ou muro de condomínio (caso Cine Guaraci e Cine Olaria), parques e praças viram quintal pra vereador implementar qualquer equipamento de qualidade duvidosa. 


Quem não lembra também do Hospital do IASERJ sendo esvaziado às pressas pra ser demolido e virar só mais um terreno? pacientes morreram neste processo. Quem não lembra da Aldeia Marakanã ser ameaçada com armas sônicas em 2009? Enquanto isso, o próprio Maracanã, mesmo tombado, foi demolido! São tantos os patrimônios dilapidados em troca de qualquer valor.


Esta é a cara da nossa cidade, que já perdeu e muito o seu limite para o mundo paralelo. É nela que nos acostumamos a viver. Não é inocente também que o edifício do MEC se torne símbolo de ataque do governo, é ataque a um projeto de Brasil de Getúlio que um dia sonhou ser grande, que sonhou ver a educação como centro da mudança junto com Brizola ou ver a cultura como a potencializadora de um Brasil País de Todos com o Lula. Seu abandono é fruto de um uso que ruiu pelo interesse próprio do capital que não se importa com nada além do valor do solo e da capacidade de revenda. E pensar que se lá atrás tivéssemos encarado enquanto categoria de arquitetos em massa e sociedade a defesa firme dos casarios de Campinho, do parque Ary Barroso, dos Cinemas de Rua, da Fazenda Columbandê, Aldeia Marakanã, fossemos críticos a certos mega projetos, a certas operações urbanas em nossa formação e na formação dos nossos, hoje a história da cidade poderia ser diferente.


Há uma disputa de poder em torno deste projeto, mas nesta disputa a arquitetura segue um caminho fantástico de contradição e ambiguidade. Foram anos em que o olhar hegemônico da arquitetura tratou (e segue tratando) de apoiar os projetos dos inúmeros poderes vigentes sem fazer o devido filtro crítico. Ficamos felizes com um Museu de Arte do Rio construído no lugar de um hospital, felizes com qualquer projeto espetacular em aço e passamos pano no desaparecimento de vigas de aço corten de 40m de comprimento.


Ficamos felizes com os museus do amanhã às custas de inúmeros pobres que seguem sem acesso a lazer, cultura, habitação de qualidade ou sequer escritura de seus pequenos terrenos suburbanos que, segundo a proposta do novo plano diretor, poderão ser remembrados por construtoras para gerar maior interesse especulativo/econômico. 


Mas é isso, nos acostumamos, e enquanto nos acostumávamos e negligenciávamos, o rapto cognitivo aconteceu e o campo da arquitetura não viu. Não vimos, pois somos educados que arquitetura é peça de luxo, só a peça de luxo se torna importante, mas um dia até o rapto chega nela e isso nos acorda. Anos e anos desvalorizando a importância dos marcos arquitetônicos existentes de 80% do território desta cidade pesou.


Temos de abraçar o MEC, temos de lutar pelo MEC, mas salvar o MEC sozinho não salvará nada! O que precisamos mesmo é salvar a cidade desta métrica onde o valor de mercado do solo é a centralidade da discussão urbana enquanto o povo tenta com sorte sobreviver a esta loucura de cidade onde o estado foi terceirizado para as milícias e a vida foi mercantilizada.


A discussão do MEC é um reflexo e alegoria desta realidade: um bem público de valor incalculável que será precificado e leiloado para o mercado privado junto com outros 2mil bens.


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