O trabalho autobiográfico de william professor, ao contar a história do nascimento do chamado Comando Vermelho desmistifica de forma muito simples algumas distorções que vislumbramos no senso comum.
Destacando algumas:
A primeira delas, o tal encontro entre presos políticos e presos comuns passa meio periférico no livro, demonstrando que pra professor este não foi um eixo fundamental.
Notar isso é importante em um país onde até esta história perpassa trazendo no imaginário uma espécie de encontro de iluminados fazendo um trabalho de base.
O eixo que professor demonstra com força é o fato de que sob a lei que prendia os presos políticos, pessoas que não participavam de nenhuma organização também sofriam das penas mais severas, porém, quando veio a anistia, a materialidade do racismo e classismo brasileiro se via no fato de que os presos políticos sairam e os presos comuns ficaram (embora ambos assaltasse bancos por exemplo).
Entre outros, professor demonstra como a construção do chamado Comando nasce mais em função da estrutura de repressão do estado e da necessidade deste criar um inimigo do que de um desejo das lideranças. Desejo este que fica sempre claro: conseguir a liberdade.
O livro é um papo reto, retíssimo, destes que a gente não gosta de ter por aí e por conta disso seguimos navegando no meio do racismo que marginaliza criando dicotomias que não solucionam nada.
Ler esta obra faz pensar muito, até detalhes que parecem bobos como a baixa presença de Bezerra da Silva nos setlists das rodas de samba.
Reflito como a gente cria imaginários de uma pretensa pureza ideal para tentar combater a máquina de propaganda racista que vende uma parte significativa da sociedade como criminosa, membros de facção, etc. Esquecemos de lidar com o humano das pessoas e com a materialidade dos problemas.
Por enquanto só esses pitacos, o livro é muito maior que isso e por isso recomendo muito.
Pouca coisa é mais terrível no debate de formação e de cultura dos subúrbios que o apagamento do protagonismo negro na construção do solo.
É comum contarmos a história da paisagem suburbana vinculada ao imaginário das casas de porte neocoloniais, na formação dos trabalhadores fabris, em geral imigrantes europeus e na glória de grandes beneméritos que investiram num lugar.
Concordo que seja plausível contar a história da Zona da Leopoldina citando nomes como Capitão Baltazar, família Nunes ou Álvaro da Costa Mello, porém esta leitura esconde a força que riscou o chão sendo capaz de consolidar a peculiaridade e identidade que o abraça.
Era na festa da Penha que os citadinos espacializavam a região. Os escravizados ocupavam a base da pedra e ali construíam sua realidade, seus batuques, sambas, rodas de capoeira. A festa da Penha fora por séculos um fervo de expressão cultural com impacto geográfico. O mesmo porto que escoava a produção agrícola, trazia romeiros. A rua dos Romeiros demarca até hoje em traçado o encontro do mar (do porto maria angu quem sabe) até a Penha onde fora erguida a Igreja.
Nos importa lembrar sempre que: Penha não é Vila da Penha, ambas são fundadas por “penhas” distintas diga-se de passagem. Apesar disso, se encontram na avenida da arte. Noel, que era de outra Vila muito cantou sobre a Penha. Fico a pensar que anos mais tarde, a vila de Noel leva um dos mais imponentes sambas enredos do carnaval para a passarela Darcy Ribeiro. Seu compositor, Luís Carlos que era da Vila da Penha. Alguma coisa realmente acontece na nossa vida quando a gente cruza a esquina da Rua dos Romeiros com a Brás de Pina, admiramos o Parque Shangai e sua jóia de carrossel, gostamos do comércio e vemos o povo nos corres do BRT, do alto Nossa Senhora da Penha nos observa quieta.
Os pés que marcaram a rua dos Romeiros definiram o traçado urbano daquela região antes mesmo que qualquer administrador público o fizesse oficialmente. E quem haverá de contestar? Claro, esta não é uma história romântica, é a história crua de formação de uma região onde a repressão sempre foi forte. Apesar de tudo, o chão da Leopoldina venceu e seu povo segue resistindo através dos seus modos de habitar.
A Penha, como qualquer recorte de Rio de Janeiro, representa em alguma escala esse emaranhado que compõe o solo brasileiro. Aqui faz-se legal rememorar Espírito da Luz, o sambista anônimo de Rio Zona Norte que coloca o dedo na ferida do recorte geográfico etnocentrado no homem branco médio. Em tempos em que buscamos um novo marco civilizatório, é imprescindível que histórias como esta sejam contadas sem o enviesamento da branquitude. É, entre outros, a festa da Penha, o aquilombamento, a sociabilidade, dos negros que viabiliza o uso e a ocupação urbana da zona da Leopoldina e não o contrário. É através da força deste povo que esse território ganha valores culturais capazes de torná-lo especial, singular e aprazível.
Primeiramente, este texto é um produto de um pensamento coletivo, muitas vozes ecoaram e conversaram e isso convergiu nestas pontuações que aqui trago.
Acima de tudo, nunca defendi a realização da festividade em meio a pandemia, considerei uma precipitação o anúncio lá atrás ainda em 2021, pois o mesmo colocou milhares de trabalhadores do carnaval em linha de ação em um momento em que a pandemia ainda não se mostrava tão controlada assim. Segundo: pior que a realização do carnaval como conhecíamos foi a solução proposta, um falso cancelamento. Porém, apesar de não estar na agenda, ele esteve e aconteceu.
Foram inúmeras as festas privativas, lotadas onde todos sabemos que os controles de mitigação da covid são inexistentes, ou como diz a famosa alcunha, para inglês ver. Além do caráter de festas privadas, foram experimentados modelos de negócios novos a partir das festividades, entre eles destacam-se além dos blocos privados, os minidesfiles das escolas de samba. O carnaval de rua não deixou de ocorrer, ele aconteceu por linhas de fuga e não mais pelos blocos tradicionais que já há alguns carnavais estavam no sistema de fomento do megaevento.
Nos subúrbios, as turmas de Clóvis resistiram. Suas saídas repletas de foguetórios foram notadas por inúmeros moradores que sequer sabiam da existência deste tipo de evento. Bares lotados, ruas cheias, um povo que simplesmente não consegue mais conviver sem o encontro presencial e que não suportou mais um ano sem evento. O que o feriado mostrou foi: a festa em si não morrerá, independente do quanto se tente estragá-la para encaixar em um modelo comercial, porém ela pode, e muito, se modificar a ponto de perder seus elementos de fundamento.
O teste de comercialização da festa teve como principal resultado a meu ver uma fragmentação do sentido coletivo dos eventos, os minidesfiles que obrigaram escolas a eleger aproximadamente uns 80 componentes de uma gama de 2500 foliões é passível de criar uma realidade paralela nas escolas, uma quantidade ínfima que de longe não mostra o poder de formação de uma agremiação e que, como dizia o Império Serrano, segue escondendo gente bamba. As escolas com certeza saíram as mais prejudicadas, pois, além de retornarem ao trabalho árduo mais cedo (vide os barracões, ensaios de comunidade, ensaios de bateria, etc) ainda seguirão trabalhando em meio a pandemia até o dia do desfile oficial em abril.
O sambódromo se tornou um dos únicos espaços apagados e vazios da cidade neste fim de semana, o que já demonstra o peso simbólico da tragédia, diferente do ano anterior, onde apesar de não ter o carnaval a apoteose brilhou em cores celebrando todas as escolas de samba que por ela passa. Este mesmo sambódromo que um dia foi uma arquitetura pensada para a celebração do povo e que já vem sofrendo com o desmonte de sentido demarcado pelos ingressos caríssimos e camarotes que preferem fazer uma festa rave em meio aos desfiles (sim, é possível pagar caro para ir ao sambódromo e não ouvir samba). A mercantilização das escolas seguiu mais um passo na escala, e será preciso muita resistência popular para que o próprio povo, que é fundamento da escola não seja excluído de vez da festa.
Quanto ao carnaval de blocos, creio que um grande impasse se deu por conta de uma tradicional máquina de controle, o fomento cultural. Uma vez que um sistema autônomo é capturado pelo sistema de fomento cultural e passa a viver disso ano a ano para realizar sua atividade, a ausência deste fomento não significa o retorno ao modelo autônomo anterior. Creio que nisso muitos blocos se perderam, sem carnaval de rua e sem fomento, muitos partiram para a festa privada como possibilidade de fazer alguma renda, outros nada fizeram.
As ruas, porém, são um espaço político do carnaval, lembremos que mesmo a apoteose é uma rua da cidade. E rua vazia e carnaval não combinam. O povo fez, do seu jeito, o carnaval para além do carnaval. Basta dar o feriado e o povo retoma as ruas.
Com isso o sistema fagocitou o modelo de gestão vigente até então, experimentou novas modelagens de negócios (como os minidesfiles e blocos de clubes) e deixou as ruas a novos embriões de blocos autônomos que não precisam de estrutura ou verba para acontecer. Assim, a prefeitura realizou um carnaval mesmo dizendo que não o faria e se eximiu de preparar a cidade para a tomada das ruas. Este modelo das ruas, porém dura pouco, basta um carnaval com ruas autônomas em protesto (como já foram alguns bons carnavais) e tudo volta a ser controlado a ferro e fogo e quem sabe corda e ingresso.
O que cabe a nós? Como bons Clóvis, resistir, confrontar, se divertir e meter medo, porque sim, Clóvis meus amigos é pra meter medo, sem romantismos de um passado que não volta mais.
Fica a lição, aos blocos e escolas, também precisamos lutar pois o modelo posto é o carnaval do não povo que vai brigar para expremer seu tempo de desfile entre um episódio de BBB e um filme repetido, um zé carioca batendo caixinha de fósforo para o pato Donald ver. E fica a crítica ao cinismo de um sistema político que usou da bandeira da saúde pública para cancelar uma das festas populares mais importantes que temos, mas que no fundo só fez reorganizá-la em outros moldes econômicos onde todos os eventos privados foram repletos de aglomeração e covidário. Não podemos entregar o carnaval a esta modelagem, se assim fizer, já adianto que é melhor baixar os estandartes e enrolar as bandeiras, passou do tempo dessa massa popular que constrói a história que a história não conta assumir-se mais Clóvis e fazer em abril um carnaval para meter medo no sistema S.A. que tenta financeirizar tudo.