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Fragmentos de uma luta de classes carioca

A ideia de uma identidade carioca, ou uma carioquisse, surge de um recorte específico e estereotipado da cidade do Rio. Esta que já foi capital nacional e viveu anos de pujança. Esta identidade a meu ver se demarcou por um recorte geográfico muito bem definido, a escolha de uma vertente de espraiamento e especulação voltada à burguesia e as elites tanto cariocas quanto nacionais.

Assim, criou-se a imagem de Rio de Janeiro voltada ao eixo Zona Sul da cidade. O próprio termo Zona Sul nasce deste processo de autossegregação (há pesquisas muito importantes que explicam melhor esse momento). O lugar do carioca nesta construção se divide pelo seu recorte de classe. Para a burguesia e todos os que podem pagar, destinou-se o eixo de crescimento situado entre o oceano e os maciços, e para o restante da população destinou-se dos maciços ao interior do continente (simplificando o recorte).

Neste sentido, podemos entender que, se por um lado o capital cultural, simbólico, narrativo da cidade que vence historicamente como verdade de representação foi forjado em uma parte desta (mesmo que capturando diversos elementos da cidade como um todo), ao outro lado, ficou o relento de fazer sua própria história, porém sem que esta esteja na oficialidade das narrativas, exceto quando domesticada pelos que escrevem e tem voz.

A complexidade do Rio é que sua construção cultural/territorial não é dicotômica, há nuances das mais diversas que surgem no intraurbano. Entre as muitas nuances vou destacar 3 grandes topônimos: O Rio (retratado pelo eixo centro-sul estendendo-se a Barra da Tijuca e Recreio), Os Subúrbios (retratados pelas Zonas Norte e Oeste excluindo-se Barra e Recreio), as Favelas (retratado por lugares de ocupação não formal que se encontram pulverizados pela cidade como um todo).

As favelas sempre foram denotadas como o lugar que deve ser expurgado, desde termos como área de risco, até o estigma de território da violência, a favela é o território onde o Estado tem liberdade garantida pela opinião pública para executar o que quiser, independente das leis. As favelas resistem a morte, a remoção, a ausência (ou presença torta) do Estado e a presença das disputas mais viscerais de poder e espólio sobre o direito a vida.

Os subúrbios por sua vez, expressam um sombreamento difuso. São territórios legalizados, em geral propriedades privadas destinadas aos mais diversos tipos de pobres que, em algum momento da vida tiveram condições de adquirir um bem, um imóvel.  Ainda que muitas vezes, tenhamos bairros tão ou mais pobres que algumas favelas, há um caráter de origem formal no território. Além de formal, há uma relação de distinção e heterogeneidade na constituição dos mesmos.

Assim como não podemos dizer que o tratamento dado ao Vidigal é o mesmo dado ao Cesarão, também não podemos dizer que o tratamento dado ao Méier é o mesmo dado a Honório Gurgel. E são justamente nestas disparidades que a busca de uma certa identidade se torna limitada. O que unifica as lutas das favelas, antes de uma identidade favelada e periférica, é a disputa de classe, o desejo de que a máquina do poder pare de matar os moradores deste lugar. Para os subúrbios esta discussão é mais complicada, pois não há por parte do Estado um ataque claro aos territórios. A PM não passa da mesma forma nas ruas da Vila da Penha como passa nas ruas de Costa Barros, por exemplo. Este tipo de relação torna complicado a construção de um sentido comum e de elementos de igualdade entre os dois bairros (base para a construção de sentido de identidade).

É com base nisso que temos que lidar na hora de produzir nossa história e nossas lutas. Uma identidade suburbana, a meu ver é cada vez mais inviável de se constituir sem que a mesma se reduza a um estereótipo domesticado, um Zé Carioca contemporâneo, um Zé Pelintra que anda pela Lapa pra tentar chamar a atenção de gringos. O que precisamos compreender é a construção de uma emanação de enfrentamento de subúrbios e favelas como agentes de lutas, uma emanação do vir a ser pobre que reconhece na sua condição de vida o impacto que a segregação social, econômica e territorial lhe impõe. Sob este reconhecimento que seremos capazes de entender o que leva um jovem branco morador de um bairro pobre hegemonicamente negro a ser visto pelas forças do poder como um jovem também negro quando está no seu bairro.

Esta segregação invisibiliza sua voz, deforma seu bairro em nome da especulação imobiliária descolada do cotidiano, mata quaisquer infraestruturas como transporte, hospitais, escolas, etc. Ela implode os saberes e fazeres do povo, apaga sua paisagem, seu patrimônio construído, e sua história. O pobre não tem acesso à cidade como um todo, sem que seja questionado. Ainda que alguns tenham conseguido romper certas brechas e ganharam espaços de fala, o discurso hegemônico ainda é domesticado. Não se modifica a estrutura, mas se constrói um equipamento x ou uma apropriação cultural y e isso é vendido como uma solução. Criamos um pólo gastronômico em um bairro qualquer e deixamos o bairro vizinho entregue ao poder paralelo do tráfico, milícia e igreja unificados.

Não importa as forças que estão no poder, a base de constituição delas nasce da burguesia que pouco conhece os espaços segregados e invisíveis da cidade. Somos governados e geridos (seja pelo público ou pelo privado) por grupos e forças cuja origem está no mais elitizado dos espaços, nas universidades de ponta, nas escolas de ponta, onde muitos dos mais pobres nunca pisaram, pois precisam enfrentar uma luta hercúlea pela sobrevivência desde cedo. Quem é pobre não tem tempo de estacionar o carro no Leblon às dez da manhã de segunda-feira, não tem tempo de dar opinião em jornais de grande circulação ou de passar o dia bebendo uísque a beira da praia como forma de compor um grande sucesso nacional.

Por isso e outras mais, nossa luta não pode ser apenas uma disputa de identidades, pois a identidade carioca já está formada e dentro dela, o pobre já tem seu lugar definido e estereotipado. Nossa luta é um combate de classes, onde o suburbano e periférico veste seu Clóvis. Sob a fantasia está o lazer, a alegria, a dor, a paz e a violência. É com este ferramental de quem, nesta cidade, é realmente capaz de experimentar com tranquilidade as mais doidas contradições da sociedade, sem cair no maniqueísmo raso das intempéries, que teremos de buscar nossa alternativa para não sucumbir.

Turma do Indio 2017 – Guadalupe – imagem de Vincent Rosenblatt
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