Por que em meio a tanta miséria parte significativa do povo ainda enxerga com prazer a ostentação? Copos da Stanley de centenas de reais, bezerros dourados na capital paulista, farras em apartamentos de luxo. Porém não é só nas estratificações mais ricas da sociedade que habita esta forma de pensar.
Se tem uma coisa que o capital soube explorar muito bem é o fetiche da mercadoria. Ele trabalha como desejo e o simbólico para transformar o tempo todo um produto em algo mais desejável. Com a artimanha da publicidade, qualquer coisa pode ser desfigurada do trabalho empreendido e remodelado para algo mais palatável ao nosso imaginário. Este é um bombardeamento que vemos todos os dias.
No Brasil, isso se torna altamente nocivo a medida em que nossa concepção de sucesso se baseia muitas das vezes em um excerto de bens de consumo como símbolo de ascensão social. Vou citar aqui um fragmento do camarada Diego Felipe, professor de filosofia, pensador suburbano e midiativista sobre o tema quando ele relembra de uma antiga propaganda de TV:
“É a posse de “coisas exclusivas” que permite a diferenciação entre os “estamentos da sociedade”. É um valor neoliberal que nos anos 90 foi bem materializado em uma propaganda de um produto escolar, uma tesoura do Mickey anunciada pelo jargão “eu tenho você não tem”. Esta “mentalidade psicológica infantil” que é reproduzida pela ideologia neoliberal vale para tudo hoje. De marcas de carro que são vendidas a preços surreais até os últimos modelos de videogames como o Playstation 5. Para a elite brasileira mais vale pagar caro e ter o que os outros não têm, do que pagar preços justos e não poder afirmar status diferenciados”.
Independente do trabalho empreendido, há um grau de exclusividade que é engendrado em certas marcas, onde é notório que tanto a técnica quanto as tecnologias envolvidas não são os elementos principais que definem o custo. Quantas não são as diferentes lojas de roupas cujas camisas vem de uma mesma fábrica chinesa? Produtos similares com etiquetas distintas se diferem em preço via capacidade que uma marca x ou y tem de capilarizar na sociedade o seu sentido de ser. É por conta disso que um mesmo tipo de camisa de malha pode variar de 30 a 300 reais.
O Brasil tem se habituado a estar nesta construção onde a aceitação social está diretamente ligada a capacidade de consumir os mais diversos produtos, tendo como principal fundamento mostrar que o indivíduo está em outra estratificação econômica. É com base nisso que uma pessoa que melhora minimamente sua condição financeira aceita endividar-se para ter o carro do ano, a roupa da marca mais cara, a decoração de interiores da tendência, o celular que poucos conseguem ter. Cabe a própria pessoa, após a compra, criar a justificativa que valide a qualidade de forma a aceitar o preço. Para algumas, isso precisa ser devidamente registrado nas redes sociais, a vitrine onde todos parecem agir como pessoas públicas. Enquanto somos tomados por esta onda de mercado, vamos sentido o esvaziamento do sentido de ser no mundo batendo a nossa porta.
O ciclo do fetiche ostentação nos coloca numa prisão sem muros, onde cada fluxo de pensamento direciona a vida em função do que os outros tendem a pensar sobre nossas posses. O que passamos a construir é um laço constante de servidão e uma tentativa de responder a grande crise existencial a partir de redes de ressentimento. No fim todos sofrem, o consumista ressentido que não consegue encontrar um sentido profundo no que faz e nos objetos que compra e consome e aqueles que não conseguem alcançar uma linha de consumo e acabam por ser segregados pelo primeiro grupo.
O ser humano que antes recorria ao transcendente como uma recusa a vida real ainda era capaz de enxergar um tempo estendido, um mundo póstumo, uma obra permanente fazia significado. Hoje, no aprisionamento do fetiche, esta forma de apaziguar seus demônios tem um grau de imediatismo extremamente alto. Tão alto que a relação entre o prazer da ostentação e a frustração com o objeto precisa ser constantemente renovada.
A trilha aberta não traz respostas e faz o ser humano estar frente a frente com a fraqueza. Talvez por ser incapaz de sobreviver a existência do que é viver sem saber ao certo quanto tempo temos, para que estamos vivos aqui e sem termos nenhuma garantia de redes de proteção. Assim, não escapa do bombardeamento social, deste imenso campo de disputa onde cada indivíduo tem o “dever” de mostrar que venceu na vida. Nisto, o que construímos é um sistema social e cultural de pirâmide cuja prova do sucesso vem do comparativo entre aqueles que conseguem ter com o que não tem (seja o que for, ainda que não seja útil).
Este sistema de – consumo, fetiche e ressentimento- não resolve a crise e a existência humana, antes disso ele aprofunda. Existir envolve a nossa capacidade de afetar, de agir no mundo, de produzir e criar e de, mesmo que de maneira inconsciente, operarmos pela preservação do coletivo. Somos seres fracos quando prostrados na lógica do consumo cuja exclusividade alimenta nosso ego pela depreciação do nosso semelhante. Por sua vez, somos mais fortes conforme somos lançados no oceano do acaso criando ciclos de produção coletiva da vida e do próprio sentido dela.
Precisamos repensar um novo caminho, onde seguir em frente passe pela força de suportar as agruras e dores que o acaso abre. Mais que isso, precisamos recuperar uma ética que nos trouxe e nos manteve vivos até aqui. Apesar dos pesares, o ser humano traz em si o desejo de viver e seguir vivo, por mais caótico e casuístico que seja a trilha.
Podemos ter um exemplo destes caminhos na dolorosa estrada do Samba, que como bem lembrava Nelson Sargento: foi duramente perseguido. Em meio ao massacre que tenta constantemente apagar da história a potência de muitos povos, alegria de Jovelina está em formar uma corrente com elos muito resistentes, daqueles que levam bom tempo para arrebentar só para incomodar muita gente que quer terminar com nossa cultura.
É um crime pagar 200 reais em uma camiseta de malha da Osklen que não tem nada de muito diferente de uma camisa de 50 reais da Hering? Não, mas deveria ser no mínimo ofensivo acharmos isso normal em um país que parte gigante de sua população passa fome. Esse é nosso bezerro de ouro da escala do cotidiano e é isso que precisamos desnaturalizar. E se é pra comprar roupa, por que não passarmos na feirinha da Pavuna primeiro?
