Desde a mudança da organização administrativa da cidade do Rio que dividiu a cidade por Áreas de Planejamento e Regiões Administrativas e as legislações vigentes se deram rua a rua, o termo Subúrbio não cabe na lógica formal do planejamento e da administração pública. Ele porém segue pairando no ar como uma enunciação coletiva.
A cidade segregada se deu durante anos por conta de expropriação de tributos de determinadas zonas da cidade e de uma escolha clara de como se daria a distribuição espacial deste território. Assim, as administrações vigentes atuaram de modo a privilegiar um lado específico que seria destinado aos mais ricos e grande parte da classe média. Expropriação esta, que por sua vez nunca foi corrigida por nenhum governo.
Hoje, a melhor expressão de Subúrbios é muito menos territorial e muito mais sob modos de fazer do povo. A construção de laços dos mais diversos. Parte da sociedade organizada em torno desta enunciação busca um caminho de costura e reconstrução do que seria esta identidade. A identidade por sua vez nunca dará conta da complexidade e das dinâmicas populares que giram em torno do sentido de ser ou não ser suburbano no Rio de Janeiro.
Boa parte da pujança e do imaginário se constituiu por algumas políticas de Estado. Escolas públicas, habitação de interesse social, eventos cívicos, o Varguismo teve um papel importante nesta construção. Soma-se a isso a enorme resistência dos povos negros, sempre preteridos e vilipendiados na sociedade, são eles que constroem em seus terreiros, aquilombamentos e barracões o mundo do samba, do funk, da soul music, dos encontros na escassez e da fé. Os Subúrbios são um amálgama disso tudo e muito mais.
Se a relação da cidade formal com a favela é de medo e terror, onde o que separa a favela da cidade formal é que é aceitável pelo sistema o direito do Estado matar na favela e de tratar seus moradores como não cidadãos, nos bairros dos subúrbios que não são considerados favela é dado a invisibilidade e a captura pelo exotismo. Assim, passa ano e sai ano, e cada administração pública usa de uma lógica específica para tentar capturar o discurso e amarrar em torno de uma identidade passível de ser controlada.
As décadas de 70, 80 e 90 levaram os moradores de regiões ditas suburbanas a migrar para uma emergente Barra da Tijuca onde os modos de vida e cultura deste novo modelo de cidade eram vendidos diariamente. Quem viveu estes anos se lembrará de como era matéria dos principais programas de estilo de vida as idas de jogadores e artistas a churrascarias e restaurantes, como era legal o jogador de futebol faltar o treino pra bater um futvolei na praia e muitas outras referências. Enquanto isso, no território onde muitas destes nasceram e se iniciaram, o que vingava eram os bailes. Dentre eles, um modelo ganhou força e ajudou ainda mais a segregar a cidade, os Bailes de Corredor. Os Bailes de Corredor mudaram muito a forma como o adolescente curtia a festa e vivia a própria cidade, pois alimentava um bairrismo combativo. Em pouco tempo, jovens passaram a frequentar festas de outros bairros apenas no intento da disputa.
A beira disso, também nestes anos, explodem o modelo evangélico neo-petencostal Macedos e Malafaias como grandes expoentes, mas este modelo não pode ter essa leitura simplista. O neopetencostalismo opera muito menos por meio do texto escrito, de uma liturgia organizada e centralizada, e muito mais pela experiência pessoal de transcendência. A forma de fé cresce por sua simplicidade organizativa, basta uma liderança capaz de produzir contato com o transcendente e ali poderia se fazer um círculo de oração, um ponto ou até mesmo uma igreja.
Ao definir o adversário a partir de qualquer um que não professe a fé, o petencostes por sua vez acaba que promove um movimento silencioso e silenciador. O fiel não deve se misturar ao mundo, deve produzir a si mesmo e estar junto com os seus (a igreja) num laço de santidade. Para o neopetencostal, o outro tende a ser um desagregado que leva a vida influenciada pelo adversário. A situação piora diante de outras crenças, em especial as crenças de matriz africana, onde aí sim quem as professa é visto como um profeta do adversário. Este tipo de signo constrói boa parte do campo de fé suburbano hoje em dia, de fortalecimento social e caminhos de coletividade. Dali levantam-se muitas lideranças, e outras muitas ainda se aproveitam para usar deste sistema como palanque. Mas ainda assim é preciso nos aprofundarmos nas relações e nos sombreamentos, pois uma profetiza neopetencostal em um círculo de oração está muito mais próxima dos modos de viver de uma benzedeira ou mãe de santo do que de um Silas Malafaia da vida.
Ainda assim, é curiosa a relação de conflitos que apesar de parecer maniqueísta, muitas das vezes passa por um relativismo. Quantas não são as famílias suburbanas que tem sentado na mesa um filho que trabalha para a polícia (uma das possibilidades de emprego e saída pra vida do pobre) e um filho que vive de dinheiro da contravenção? Mas nossas formas de entender certos signos sempre serão outras.
Quando a gente é pobre pra valer a gente vem forjado na violência, no palavrão, no papo reto, e na ação visceral. Quem tem fome precisa ser visceral pra sobreviver, mas também é solidário. A gente aprende a lidar com os signos de forma diferente, a lidar com o senso de justiça de forma diferente, pq a vida violenta a gente.
A vida violenta quando todos parecem amigos, mas uma mudança simples no recorte de classe deixa claro quem está num ciclo abaixo da pobreza, violenta quando as coisas e lugares que frequentamos são preteridos ou esquecidos na história. É violento quando alguém tem medo do seu lugar, da sua rua, do seu lote. É assim que a gente é criado, isso traz signos pra gente lidar com a vida.
O projeto de poder dos que conseguem gerir o sistema (mega empresas, governos, ricos, investidores, etc) envolve a manutenção de um modelo inspirado em uma certa classe média modelo. Não há um traço político concreto que seja realmente popular e massificado, capaz de interpretar os signos e criar uma política de estado em torno deles. O trabalho feito é capturar tudo que pode, gerenciar as vozes e interlocutores dissonantes por meio de inúmeros sistemas de controle social (como a lei da vadiagem por exemplo).
É assim que por exemplo, não há nenhum projeto significativo de planejamento de recomposição da cidade formal que gere pólos de interesse pra classe média reocupar os subúrbios cariocas. Ao mesmo tempo, há interesse do poder imobiliário (entre outros) em movimentar parte de sua economia nestes territórios hoje bastante esvaziados reconfigurando-o como espaços do modelo padrão de consumo da classe média (a forma condominial apelidado de barra da tijucanização por exemplo).
Por outro viés, parte dos modos de fazer e cultura que tanto manteve o povo vivo em tempos de escassez e do esquecimento político é traduzido e adequado para ser digerido e palatável a parte da classe média que tensiona ou entende o peso da desigualdade. Porém tudo é escolha, exemplos: ao invés de por pra frente uma política de revitalização dos centros de bairro a partir de seus cinemas de rua, a política de cinema de rua escolhe um cinema de um bairro específico, revitaliza e considera este um pelo todo. Assim que tudo é feito, escolhem-se alguns bairros e trazem alguns melhoramentos estruturais coletivos nestes e fazem o um ser a representação do todo.
Não é simples trabalhar com o sentido dos Subúrbios no seu espectro mais complexo sem lermos sob a ótica de suas reais narrativas que são duras. A beleza dos subúrbios está nesse olhar total que passa inclusive pelo que nos parece assustador e gostaríamos de esconder, assim como o Clóvis que pode esconder por trás de sua máscara o mais engraçado ou o mais temido dos seus vizinhos.