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Sobre a complexidade dos Subúrbios segregados

Desde a mudança da organização administrativa da cidade do Rio que dividiu a cidade por Áreas de Planejamento e Regiões Administrativas e as legislações vigentes se deram rua a rua, o termo Subúrbio não cabe na lógica formal do planejamento e da administração pública. Ele porém segue pairando no ar como uma enunciação coletiva.

A cidade segregada se deu durante anos por conta de expropriação de tributos de determinadas zonas da cidade e de uma escolha clara de como se daria a distribuição espacial deste território. Assim, as administrações vigentes atuaram de modo a privilegiar um lado específico que seria destinado aos mais ricos e grande parte da classe média. Expropriação esta, que por sua vez nunca foi corrigida por nenhum governo.

Hoje, a melhor expressão de Subúrbios é muito menos territorial e muito mais sob modos de fazer do povo. A construção de laços dos mais diversos. Parte da sociedade organizada em torno desta enunciação busca um caminho de costura e reconstrução do que seria esta identidade. A identidade por sua vez nunca dará conta da complexidade e das dinâmicas populares que giram em torno do sentido de ser ou não ser suburbano no Rio de Janeiro.

Boa parte da pujança e do imaginário se constituiu por algumas políticas de Estado. Escolas públicas, habitação de interesse social, eventos cívicos, o Varguismo teve um papel importante nesta construção. Soma-se a isso a enorme resistência dos povos negros, sempre preteridos e vilipendiados na sociedade, são eles que constroem em seus terreiros, aquilombamentos e barracões o mundo do samba, do funk, da soul music, dos encontros na escassez e da fé. Os Subúrbios são um amálgama disso tudo e muito mais.

Se a relação da cidade formal com a favela é de medo e terror, onde o que separa a favela da cidade formal é que é aceitável pelo sistema o direito do Estado matar na favela e de tratar seus moradores como não cidadãos, nos bairros dos subúrbios que não são considerados favela é dado a invisibilidade e a captura pelo exotismo. Assim, passa ano e sai ano, e cada administração pública usa de uma lógica específica para tentar capturar o discurso e amarrar em torno de uma identidade passível de ser controlada.

As décadas de 70, 80 e 90 levaram os moradores de regiões ditas suburbanas a migrar para uma emergente Barra da Tijuca onde os modos de vida e cultura deste novo modelo de cidade eram vendidos diariamente. Quem viveu estes anos se lembrará de como era matéria dos principais programas de estilo de vida as idas de jogadores e artistas a churrascarias e restaurantes, como era legal o jogador de futebol faltar o treino pra bater um futvolei na praia e muitas outras referências. Enquanto isso, no território onde muitas destes nasceram e se iniciaram, o que vingava eram os bailes. Dentre eles, um modelo ganhou força e ajudou ainda mais a segregar a cidade, os Bailes de Corredor. Os Bailes de Corredor mudaram muito a forma como o adolescente curtia a festa e vivia a própria cidade, pois alimentava um bairrismo combativo. Em pouco tempo, jovens passaram a frequentar festas de outros bairros apenas no intento da disputa.

A beira disso, também nestes anos, explodem o modelo evangélico neo-petencostal Macedos e Malafaias como grandes expoentes, mas este modelo não pode ter essa leitura simplista. O neopetencostalismo opera muito menos por meio do texto escrito, de uma liturgia organizada e centralizada, e muito mais pela experiência pessoal de transcendência. A forma de fé cresce por sua simplicidade organizativa, basta uma liderança capaz de produzir contato com o transcendente e ali poderia se fazer um círculo de oração, um ponto ou até mesmo uma igreja.

Ao definir o adversário a partir de qualquer um que não professe a fé, o petencostes por sua vez acaba que promove um movimento silencioso e silenciador. O fiel não deve se misturar ao mundo, deve produzir a si mesmo e estar junto com os seus (a igreja) num laço de santidade. Para o neopetencostal, o outro tende a ser um desagregado que leva a vida influenciada pelo adversário. A situação piora diante de outras crenças, em especial as crenças de matriz africana, onde aí sim quem as professa é visto como um profeta do adversário. Este tipo de signo constrói boa parte do campo de fé suburbano hoje em dia, de fortalecimento social e caminhos de coletividade. Dali levantam-se muitas lideranças, e outras muitas ainda se aproveitam para usar deste sistema como palanque. Mas ainda assim é preciso nos aprofundarmos nas relações e nos sombreamentos, pois uma profetiza neopetencostal em um círculo de oração está muito mais próxima dos modos de viver de uma benzedeira ou mãe de santo do que de um Silas Malafaia da vida.

Ainda assim, é curiosa a relação de conflitos que apesar de parecer maniqueísta, muitas das vezes passa por um relativismo. Quantas não são as famílias suburbanas que tem sentado na mesa um filho que trabalha para a polícia (uma das possibilidades de emprego e saída pra vida do pobre) e um filho que vive de dinheiro da contravenção? Mas nossas formas de entender certos signos sempre serão outras.

Quando a gente é pobre pra valer a gente vem forjado na violência, no palavrão, no papo reto, e na ação visceral. Quem tem fome precisa ser visceral pra sobreviver, mas também é solidário. A gente aprende a lidar com os signos de forma diferente, a lidar com o senso de justiça de forma diferente, pq a vida violenta a gente.

A vida violenta quando todos parecem amigos, mas uma mudança simples no recorte de classe deixa claro quem está num ciclo abaixo da pobreza, violenta quando as coisas e lugares que frequentamos são preteridos ou esquecidos na história. É violento quando alguém tem medo do seu lugar, da sua rua, do seu lote. É assim que a gente é criado, isso traz signos pra gente lidar com a vida.

O projeto de poder dos que conseguem gerir o sistema (mega empresas, governos, ricos, investidores, etc) envolve a manutenção de um modelo inspirado em uma certa classe média modelo. Não há um traço político concreto que seja realmente popular e massificado, capaz de interpretar os signos e criar uma política de estado em torno deles. O trabalho feito é capturar tudo que pode, gerenciar as vozes e interlocutores dissonantes por meio de inúmeros sistemas de controle social (como a lei da vadiagem por exemplo).

É assim que por exemplo, não há nenhum projeto significativo de planejamento de recomposição da cidade formal que gere pólos de interesse pra classe média reocupar os subúrbios cariocas. Ao mesmo tempo, há interesse do poder imobiliário (entre outros) em movimentar parte de sua economia nestes territórios hoje bastante esvaziados reconfigurando-o como espaços do modelo padrão de consumo da classe média (a forma condominial apelidado de barra da tijucanização por exemplo).

Por outro viés, parte dos modos de fazer e cultura que tanto manteve o povo vivo em tempos de escassez e do esquecimento político é traduzido e adequado para ser digerido e palatável a parte da classe média que tensiona ou entende o peso da desigualdade. Porém tudo é escolha, exemplos: ao invés de por pra frente uma política de revitalização dos centros de bairro a partir de seus cinemas de rua, a política de cinema de rua escolhe um cinema de um bairro específico, revitaliza e considera este um pelo todo. Assim que tudo é feito, escolhem-se alguns bairros e trazem alguns melhoramentos estruturais coletivos nestes e fazem o um ser a representação do todo.

Não é simples trabalhar com o sentido dos Subúrbios no seu espectro mais complexo sem lermos sob a ótica de suas reais narrativas que são duras. A beleza dos subúrbios está nesse olhar total que passa inclusive pelo que nos parece assustador e gostaríamos de esconder, assim como o Clóvis que pode esconder por trás de sua máscara o mais engraçado ou o mais temido dos seus vizinhos.

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Já não basta sermos Latinos, já não nos bastam as identidades

É muito curioso pensar como as palavras tem um certo poder. Em nome de uma resistência ao imperialismo antiamericano, buscamos por muito tempo a construção de uma identidade latina. Esta identidade, que como qualquer outra se forja pela aglutinação e trabalho sobre alguns elementos comuns, resplandeceu na tentativa de consolidar uma força continental capaz de enfrentar o domínio dos EUA (país economicamente mais poderoso).

De certo porém, este postulado cria problemas e limitações. Entre elas, um problema notável é que a busca de uma identidade latina como resistência a uma identidade anglo-saxônica acaba por repetir a dicotomia do processo de expansão imperialista que vigorava desde as grandes navegações do mercantilismo até o processo industrial (dos primórdios ao mundo contemporâneo). Isto é, em nome de uma liberdade dos povos, acabamos por traçar uma disputa territorial ainda construída sobre signos de uma relação império-colônia, mantendo firmes todas as suas contradições.

Somos capazes hoje de determinar quantos povos compõem todas as relações sociais, econômicas e culturais do novo continente? Esta é uma pergunta importante de refletir. Há similaridades nos processos de apagamento histórico dos diversos povos que habitavam as terras antes das explorações, assim como dos povos que foram forçados a estar nestas terras como mão de obra escravizada, histórias que resistiram em meandros e relações moleculares, dentro das redes possíveis de serem traçadas. Redes estas que inclusive precisam considerar a construção hegemônica na sua formação cultural.

Com base nisto, entendo que meras disputas de resistência ou recortes que buscam negar o traço hegemônico como parte da concepção de visão de mundo, se tornarão tão enviesadas quanto aquelas que não tentam compreender as construções que estão nos interstícios ou subterrâneos das formações de saberes. De certa forma, uma leitura do Imperialismo que se mantém hoje, sem a leitura crítica das mudanças materiais do mundo, também reflete muito mais uma tentativa de manter uma identidade do que foi concebido com resistência progressista do que uma realidade a se enfrentar. Não precisamos mais entender o que é o Imperialismo, apenas seguir repetindo os mantras estabelecidos em décadas para aglutinar os nossos em torno da resistência.

Debater por exemplo, se o Halloween ser comemorado no Brasil é lícito ou se isso representa uma forma de aculturação e colonização, é deixar de lado que tal festa já é expressada de forma sincrética no México por exemplo e em outros inúmeros países do globo. Sem considerar que são parte de uma mesma visão de mundo que nos leva a celebrar o dia 2 de novembro como data de relembrar os nossos ancestrais. O que nos é mais interessante? Simplesmente negar a festividade ou buscarmos um aprofundamento da experiência, da história e da formação da mesma?

Outra referência interessante pra reflexão. Enquanto líderes globais discutem mais uma vez a urgência da crise climática, tentando encontrar caminhos quase impossíveis de saída, vale lembrarmos da experiência de Evo Morales com a Lei da Terra, que possibilita uma nova proposta de visão de mundo. A mesma só é possível de ser concebida se lermos dentro de uma costura capaz de interpretar o melhor dos encontros entre a origem indígena de Evo, um filho dos povos originários deste território continental, com a cultura latino-europeia que desenha o contrato social constitucional de nossos países.

Nós, enquanto humanidade, temos no história de nossa existência o desejo de conexão com a terra. Conexão esta que num dado momento abandonamos e cuja cultura do homem como um ente separado da terra vingou. Esta cultura precisa ser religada em todas as esferas possíveis. Pensar o Planeta como um ente completo, do qual somos parte, e projetar uma rede de partilha vai exigir muitas viradas de chave. A dificuldade maior será: como conciliar isso em um mundo onde a Terra é propriedade privada e peça fundamental para a manutenção do sistema de produção de riquezas? Vale lembrar que estas mesmas perguntas já foram feitas durante a pressão pela ruptura dos modelos escravagistas, onde homens, eram vistos exatamente assim: como propriedades privadas (objetos) e peça fundamental para a manutenção do sistema de produção de riquezas.

Neste mundo global, onde cada vez mais as discrepâncias entre as concentrações de renda e a miséria dos povos se dá. Os modelos de governo se encontram limitados e ineficazes diante das formas de organização supra territoriais, precisaremos construir e recuperar ferramentas que explodam estas relações, compreendendo que uma política isolada não resolverá. O atual contexto da crise global inclusive nos pede uma virada de chave mais radical (indo a raiz dos problemas) e de coragem de mudança do sistema em que estamos inseridos. A busca por uma identidade comum nos falha por também representar uma fronteira que enviesa as relações de exploração.

Com base nisso, sabemos que não é fácil uma mudança de paradigma. Ainda hoje vemos que não é tão simples a abolição completa do racismo e da escravidão na sociedade. Da mesma forma, assim como os mais pobres ainda são lidos como seres passíveis de todo tipo de exploração, não será simples a humanidade abolir o sentido de que o Planeta é só um objeto passível de exploração e aceitá-la como um organismo vivo completo do qual fazemos parte. Podemos e devemos iniciar religando esta ética que se mantém nos povos mais originários e mais tradicionais do planeta, independente dos continentes que habitam. Em nossa visão de mundo paradigmaticamente ocidental, economia e ecologia tem um mesmo radical, óikos, nossa casa que também é nosso Planeta. Hoje, objetificamos a Terra, exploramos seus recursos e sequer somos capazes de utilizar isso para fins de manter viva a nossa espécie. Explora-se tudo que a mão alcança, para benefício de meia dúzia. Basta ver como países que movem parte significativa da economia pelo agronegócio são também bolsões de populações que passam pela fome.

Precisamos recuperar o olhar integral da humanidade pela Planeta. Isso não será simples ou harmônico, pois mexe diretamente com quem garante suas riquezas, poderes e seu bem-estar às custas da exploração de todos (sejam animais, vegetais ou minerais) os entes que formam este ser, mas precisaremos enfrentar. Precisamos aprender a retomar as conexões mais profundas dos que celebram suas colheitas, ou o equilíbrio, a ancestralidade e as mais diversas formas de contemplação da vida. Talvez um dos nossos erros hoje, é acreditarmos que esta saída será tranquila, pacífica, por ações individuais, não será, vai exigir enfrentamento, como qualquer luta de libertação humanitária sempre exigiu. Precisamos abolir o planeta do processo de escravidão em que ele foi colocado.

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Casas de vó e um design do cotidiano

O campo da arquitetura de interiores e design de interiores possui uma dinâmica acentuada no que diz respeito a tendências, modas, novidades tecnológicas entre outros. Em geral, seus postulados acabam por definir o que é elegante e o que está cafona, o que é belo e o que é feio em um determinado recorte de tempo e espaço. O que chega para as massas consumidoras, vindo de revistas e magazines especializados, blogs, propagandas e até programas de TV cujo eixo central é a reforma de uma casa ou compartimento, reflete este universo sob o qual gira o campo de trabalho de reforma de interiores, e por sua vez alimenta a rede social de desejos.

Quem não quer ter a casa bonita e aconchegante? Precisamos porém, lembrar que, a beleza tem história, e seus signos são construídos no tempo. Para tanto, é necessário desconstruirmos o sentido de beleza condicionada ao exclusivo, a itens de difícil acesso que por sua vez, acabam sendo um instrumento de poder.

Um exemplo: As tão desejadas casinhas brancas de Mykonos tem sua estética determinada pela mesma técnica de pintura que hoje em dia marca uma enormidade de casas mais populares do Brasil, a caiação. Aquele mesmo azul e branco que remete uma memória de rua de avó, de vizinho pintando calçada ou tronco de árvore (não faça isso).

Quintal de vó – por: Rafael Jardim – link: https://flic.kr/p/BNUfU

Aconchego é um termo que se associa a acolhimento, a afeto. É possível termos cantos de afeto e ao mesmo tempo belos? Entendo que sim, se formos capazes de desnaturalizar a noção de belo relacionado a elementos externos ao afeto, ao acolhimento. É por este prisma que gostaria de apresentar as casas suburbanas como uma possibilidade real de beleza, a beleza de uma decoração construída historicamente pelas condições de possibilidades e pelos afetos inseridos no habitar.

Entre as inúmeras coisas que casas de subúrbios e populares nos ensinam, uma delas é que cada peça de decoração pode ser escolhida e concebida por fatores dos mais distintos que vão desde a utilidade até o humor. Dos populares filtros de barro, hoje considerado um dos mais eficientes e ecológicos filtros, até as fotos de família na estante ou parede, cada detalhe reflete um pouco de história ou causo da vida dos que habitam aquele lugar. A harmonia da casa está na organicidade da relação objeto, espaço e tempo, muito mais do que no arranjo de formas, paletas de cores, estilos, materiais.

Você pode ter um aparador mais modernoso comprado em uma loja especializada em móveis com design, e por em cima as fotos de formatura do filho em uma moldura adquirida na Praça 2. Talvez isso não pareça caber nos cânones de quem escreve o “bom design de interiores” mas isso cabe na história de sua família que teve naquele filho o primeiro membro de gerações a ter um curso superior. Filho este cuja avó poderia ter sido uma escravizada que seguiu sobrevivendo semianalfabeta. A foto é uma conquista e o aparador uma mesa expositiva. Não tem quadro de milhões do Romero Britto ou Mondrian que faria mais sentido apoiado naquele aparador do que aquela foto.

Da mesma forma, esta possibilidade não cabe numa estética pastiche ou forçada. O item aparece lá sem imposição regrada, pois a regra não é o item, mas a capacidade deste acolher, simbolizar, representar um valor que seja para os que ali estão. Um pé de amendoeira que cresceu contigo, um pedaço de memória solidificado num ferro velho, uma ferramenta que pertenceu ao seu avô, ainda que hoje já não pareça ser eficiente, a mesa comprada a duras custas naquela loja de móveis do bairro que praticamente nem existe mais. Tem história no quadro decorativo de autoria anônima vendida na loja de conveniências, uma história que não saberemos de uma ou algumas mãos que produziram a peça, talvez em linha industrial, talvez manufaturada, tem a história de trabalhadores comuns que vivem seu cotidiano e que nunca saberão que sua costura ou sua pintura estarão expostos em uma parede em Olaria.

Outra questão importante de posicionarmos é o humor. Por que não falar de peças de decoração que se propõem interessantes pelo lúdico e diversão? uma luminária feita com algum pedaço inusitado de automóvel, abridor em forma de pênis ou cadeira que servirá para fazer uma pegadinha com algum parente no dia do churrasco. Itens que se enquadram nesta busca parecem um conjunto de inutilidades. Estes itens por sua vez buscam uma relação de sociabilidade própria, com base na diversão, no fazer graça com o próximo, muitos destes itens tem vida efêmera, outros permanecerão sempre a postos para gerar o riso de uma visita de primeira viagem.

As casas tem destas coisas, um misto de casa com oficina, onde a mesa de estudos da criança é uma mesa velha de botequim que fica armada na varanda e que seus avós bebem a tarde contando causos à sombra da mangueira. Onde o pote de sorvete ou a lata de tinta servem como apoio para o labor do plantio das mudas que logo virarão belas árvores no quintal, onde pelo menos um dos quartos quase nunca fica arrumado e nada parece combinar com nada, mas no dia a dia tudo parece ter um sentido.

Assim como há uma espacialidade e arquitetura do cotidiano, podemos dizer que há um design do cotidiano já consolidado cujos elementos merecem e devem ser valorizados. Saber observar os itens, enxergar seu sentido histórico para aquele ambiente, e saber compor com ele muitas das vezes nos permitirá criar resultados tão belos quanto quaisquer desenhos de interiores produzidos usando peças de marcas tradicionais do ramo.

Casas de vó são casas repletas de afetos e reminiscências que habitam num cantinho especial em nossa mente, muitas das lembranças sequer refletem o que era a casa real, e muito do que amamos em nossas lembranças podem representar a peça mais efêmera que existia. Peças que talvez, no desejo de nossas avós, elas sonhavam em trocar todo dia por uma da moda mas não conseguiam porque não tinham dinheiro.

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Entre o 7 de setembro e o 2 de outubro – este título não te atrai, não dá IBOPE e não da like

No dia 02 e outubro último fechou-se o ciclo de atos pós sete de setembro. Desta vez puxado por forças, movimentos e partidos organizados da esquerda. Apesar de terem sido atos com expressão (não maiores que o ciclo de atos pré dia 07 de setembro), não escaparam dos ciclos organizados da militância. Pelo lado do governo atual, uma continuidade do Bolsonarismo foi fomentar suas redes ampliadas de telegram. Após fechamento deste ciclo, seguimos na incógnita. Aparentemente, todas as forças militantes (pró e anti-governo) não tem conseguido mobilizar mais gente que suas bases de afinidade.

Em um dos grupos, com aproximadamente mais de 900mil seguidores, o governo segue sua técnica de comunicação com suas bases, a respeito das ações que tem implementado. Chamadas como: Veto a aquisição de bens de consumo de luxo por parte da administração pública, e reformas de aeroportos e outros sistemas de infraestrutura são alguns dos exemplos de informações divulgados.

A vida cotidiana por sua vez, começa a voltar ao normal por meio de decreto. No Rio, o carnaval já ativa boa parte da sociedade que se mobiliza em torno dele, bairros de subúrbios seguem a vida como se a pandemia não existisse, cuidados sanitários são só um crachá protocolar, muitas das vezes tratado como teatro. Os tempos atípicos que a pandemia abriu estão em refluxo. A massa do povo, que não atua politicamente de forma militante, parece ter ficado anestesiada diante de tudo, ou simplesmente não está nem aí.

As militâncias mostram suas forças, suas lideranças demonstram a capacidade de agitação de suas bases, mas nada disso transborda para aqueles que neste momento estão passando fome e que estão contando moeda pra comprar itens básicos de sobrevivência, o que impera no povo é a descrença. E a partir da descrença, o foco do povo passa a ser em cuidar de si e dos seus, viver e sobreviver no dia a dia, da maneira que dá.

Assim, a vida vai voltando a uma certa normalidade forçada, um grau aceitável de ação da doença, com cidades abrindo e retomando suas festividades e seus movimentos de aglomeração. A crise econômica exorbitante aumenta o senso de desanimo e apatia social, onde as pequenas alegrias para os cidadãos encontram-se nos momentos de lazer, mesmo que estes envolvam riscos sanitários.

2022 poderá seguir nesta incógnita e sem solução. Não conseguimos promover até o momento um projeto de Brasil real para esta pós pandemia, capaz de aglutinar as massas populares, não temos resposta ainda em escala nacional para tal crise. O projeto Bolsonarista está dado e em franca expansão, mesmo que o excesso de sectarismo o enfraqueça: segue movimentando a economia em torno de uma pequena elite e deixando o povo entregue a miséria e a fome, mas amplia os canais de seguidores.

As notícias sobre offshores, ou os movimentos de interesse dos grandes senhores do agronegócio, construtoras, bancos, empresas aéreas e afins evidenciam que nem todos estão afundando. O que o Brasil vive é o aprofundamento da crise para geração de lucros em uma hiperconcentração dos privilégios e da renda.

A dificuldade de implementar tal caminho de construção está justamente na necessidade marqueteira de ganhar as redes. Por este desespero, foca-se na fofoca, no efêmero, no barraco, pois são os melhores caminhos para angariar mais likes, views e compartilhamentos.

Em meio a isso, as forças de oposição e alternativa eleitoral ao bolsonarismo insistem em campanhas estéreis de propostas e repletas de bobagens. Disputas de tamanho de pênis (enquanto o povo come osso, quando tem o que comer), misoginias, palavrões, santificações, trocas de ofensas e ataques gratuitos, campanhas nas redes sociais que buscam o engajamento pelo sensacionalismo barato que as mobiliza no melhor estilo barracos de BBB, enquanto caminham na busca incessante pelos acordos e conciliação com os mesmos velhos poderes que nunca saíram de cena.

Precisamos de proposta real de fomento aos inúmeros setores produtivos em suas múltiplas escalas, precisamos de um caminho que não deixe nossos produtos básicos de consumo e necessários a vida, se tornarem refém do espírito das bolsas de valores. Ficamos a mercê do estrago que a má gestão da crise sanitária nos colocou e seguimos em um país com índices altos de corrupção, privilégios para poucos e mandos e desmandos por parte de alguns. Além de uma estrutura cujos sistemas são altamente alienados dos problemas cotidianos do povo.

As possibilidades de saída, a meu ver, passarão por um viés distinto destas disputas de poder que são concentradas em exposição de personagens e no caminho eleitoral. Todas as candidaturas ainda estão frágeis neste processo de 2022, provavelmente nenhuma delas responderá bem às massas. As bases mais conservadoras seguirão a fluidez do percurso e se forem incapazes de construir uma candidatura a direita para além do Bolsonaro, abraçarão o elemento ou permanecerão lavando as mãos.

Resumindo: Ao focar as investidas primordialmente no pleito eleitoral de 2022, quaisquer forças minimamente progressistas estão reduzindo a própria potência de suas construções políticas e correndo o grande risco de uma derrocada do bloco anti-bolsonarista, mesmo diante de um bolsonarismo que também se esforça para perder. E o Futuro? Um 2023 em diante fraco (vença quem vencer). Qualquer um que governar com as alianças do poder constituído se verá diante de poucas saídas políticas, sofrerá uma forte pressão de domínio por parte da direita que ainda rege a agenda de controle deste país e praticamente nenhuma ação de conciliação de classes. Quaisquer dos nomes eleitos tenderão a compactuar com o aprofundamento da agenda de austeridade para garantir o mínimo de governabilidade e a turbulência desta direita que também não consegue mais emplacar um candidatável e irá tolerar um dos personagens.

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12 de outubro – Nossa Senhora da Conceição Aparecida, uma reflexão sobre o espaço.

O Brasil profundo se encontra e se reconhece em Aparecida. Na basílica onde multidões buscam um milagre, um sinal, uma recompensa ou uma simples esperança do cotidiano. Hoje também é dia do Cristo Redentor (o filho) e arquitetura/escultura símbolo da cidade do Rio. Dia 12 de outubro o país conecta sua religiosidade, sua espacialidade, seus territórios e seu cotidiano.

É comum gastarmos esforços e discussões sobre a produção do espaço pelos mais diversos parâmetros econômicos e materiais. Estudamos a viabilidade, mobilidade, eficiência, capacidade de produção e de investimentos. Pode ser, mas o habitar é uma teia complexa, que passa pelo material mas não só por ele.

As múltiplas Nossas Senhoras que existem no mundo, são referência a uma mesma santidade católica, Maria mãe de Jesus, cujos nomes diversos expressam um momento ou um lugar especial. De certa forma, Maria, que para o catolicismo tem o papel intercessor entre o Cristo e a humanidade, também constrói socialmente esta imbricada relação de pertencimento social do ser humano com o lugar. O espaço ganha importância e sentido a medida em que nele se firma a aparição, seguido do primeiro milagre, do burburinho social e da peregrinação capaz de transformar o espaço ermo em lugar de encontro.

Este é um indicie importante para pensarmos nossa capacidade de ocupação dos espaços: onde estão nossas conexões de importância com ele? Seja Nossa Senhora Aparecida conectando o Brasil ao Paraíba do Sul, seja o Cristo Filho e Redentor conectando a Mata Atlântica com a vida cosmopolita de uma cidade metrópole. O viés da ocupação que acontece pelo cotidiano das experiências populares podem trazer respostas para a desconexão que há entre a maneira como pensamos as cidades e o resultado final de seu uso e ocupação pelas pessoas.

Claro que podemos fazer a leitura a partir dos eixos de poder e controle, da interesse da igreja católica (enquanto instituição), mas isso não seria possível de acontecer sem o movimento capilar do povo. Por conta de nossa capacidade de construir significação para além do que os olhos veem, produzimos redes que nos permitem imaginar, sentir, produzir arte e criar os laços da vida humana. Tanto o evento miraculoso de Aparecida que funda uma cidade, quanto o Cristo Redentor que do alto do monte nos observa, ambos apontam para os desejos humanos de construir e relacionar suas vidas com o simbólico e afetivo.

Maria em suas múltiplas representações se conecta a Pachamama e dialoga com Onilé nesta busca humana pelo signo da fertilidade na Terra Mãe e Morada de todos nós. Nesta linha que o urbanismo, enquanto ciência surgida entre o século XIX e XX encontra sua limitação por separarmos a terra de nós mesmos e de nossos sagrado, e implementa caminhos piores ao torná-la um produto mesurável financeiramente. A história humana é um desenlace milenar de experimentos e de comunicação do ser entre os seus e do ser com a Terra. São múltiplas as linguagens que um dia se estabeleceram, se modificaram ou se esvaíram, algumas completamente, outras deixando rastros e vestígios.

Quando um rio morre para melhorar a eficiência de uma mineradora, uma parte de nós morre com ele, atualmente aceitamos isso em nome desta visão que busca o progresso constantemente, mas não teríamos a mesma ação se considerarmos a importância divina deste rio como parte de um todo que nos constitui. Compreender a ocupação dos espaços e a espacialização dos territórios por um viés distinto do que nos é hegemônico hoje nos ajudará a constituir outras histórias para a formação de nossas cidades, muitas das quais estão no subterrâneo dos saberes a espera da investigação que as traga.

Quantas estradas, caminhos, vielas não foram abertos pelas cavalgadas dos peregrinos? Quantas histórias não ficaram por estes caminhos? Ruas, vilas e cidadezinhas que testemunham pedaços de vida de inúmeros anônimos cujos causos vão sendo lembrados por onde passam. Estas pequenas doses de fé costuram uma teia popular que conecta Aparecida, aos oratórios esculpidos por antigos artesãos, aos santeiros, aos pequenos alteres improvisados que garantem a proteção dos botequins, são muitos os espaços e dinâmicas que aprendemos com o povo.

Que neste dia 12 pensemos nossas formas de conceber, produzir e viver o espaço por outro prisma. Onde o olhar da criança que corre pela rua, ou olhar do adulto que peregrina e deposita sua fé, tragam indícios dos rumos a se tomar. Ao buscar esta gramática dos saberes e modos de vida do povo, vamos nos tornar mais capazes de constituir espaços onde o pertencimento e a possibilidade de construção das relações mais profundas que concebem o bem viver social apareçam. Convém a nós, compreender a gramática com a qual o povo escreve parte de sua história em um determinado tempo e espaço, para então construir nossas narrativas a partir desta comunicação. Quem sabe assim, consigamos sair do ciclo destrutivo no qual o planeta se encontra, não há resposta simples quando estamos diante da necessidade de reformulação de paradigma, mas devemos tentar buscar caminhos.

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7 DE SETEMBRO DE UM BRASIL EM QUESTÃO

Findados os atos e manifestações populares pró e anti Bolsonaro vai um balanço. Foram três movimentos bem demarcados, uma manifestação de 7 de setembro de apoio ao presidente, no mesmo dia o tradicional grito dos excluídos puxados pelos movimentos socials e partidos da esquerda tradicional, este ano em protesto ao presidente, e hoje dia 12 um ato pró-impeachment do Bolsonaro puxado pelo MBL e partidos de centro, de direita e de esquerda.

Primeiro em termos de massa, é notório que o apoio ao presidente ainda vigora no povo, com um ato mais plural, o Bolsonaro mostrou que ainda tem força e apoio popular em sua sustentação. Ainda que não tenha sido forte o suficiente para assumir o golpe em curso, o foi pra garantir uma rearticulação no poder. Quanto ao grito dos excluídos, mostrou alguma massa, mas não extrapolou o recorte dos movimentos, Um pouco se deu por parte dos próprios movimentos e partidos não terem apoiado a ida massiva às ruas por medo de um pretenso conflito. O ato puxado pelo MBL e partidos de centro, de direita e de esquerda também se mostraram esvaziados no dia 12 de setembro.

Parte do esvaziamento se deu pela carta de armistício entre o presidente e os demais poderes, parte pelo próprio esmagamento da militância tradicional em esvaziar, e parte pelo esvaziamento próprio da construção. No fim, o balanço principal que pode ser feito parece apontar um ganho político para o Bolsonaro e o bolsonarismo, que consegue se afastar das cordas e repactuar com o congresso e com o STF. Ainda que isso desagrade em um primeiro momento a sua base eleitoral, sabemos que estas manobras de controle de base não são tão difíceis de fazer, haja vista os anos em que a pauta de reforma agrária e urbana não saíram do papel e isso não ocasionou nenhuma ruptura significativa a imagem dos governos de esquerda.

Uma frase dita pelo economista Edmar Bacha, em entrevista a Folha, aponta para uma questão importante para a elite: “Bolsonaro é uma ameaça a democracia e Lula uma ameaça a economia” (entrevista completa aqui, vale a pena ler). Com estes poucos indícios e mais alguns conseguiremos desenhar um dos perigos em que estamos.

Diferente do postado por Jessé no Brasil de fato (faço aqui um recorte):

“O anti-intelectualismo também está em casa na baixa classe média. Isso é importante quando queremos saber a quem Bolsonaro fala quando ataca, por exemplo, as universidades e o conhecimento. A relação da baixa classe média com o conhecimento é ambivalente: ela inveja e odeia o conhecimento que não possui, daí o ódio aos intelectuais, à universidade, à sociologia ou à filosofia”. na íntegra em: https://www.brasildefato.com.br/2019/05/08/artigo-or-o-que-significa-bolsonaro-no-poder-por-jesse-souza

A leitura mais simplista e que chega a ser tacanha que enviesa qualquer solução é a repetição de que a base social que gira em torno do Bolsonarismo é uma determinada classe média que odeia o conhecimento e as universidades. Nem entrarei no mérito de que a veracidade desta frase e deste conceito é uma antítese para aqueles que pregam que o PROUNI e o REUNI democratizaram o ensino superior. Não é este o mérito da questão, mas sim que, não há uma base simplista em torno do Bolsonarismo, ele abraça os mais diversos tipos de apoiadores e aglutina em torno de suas pautas, nas muitas matizes que elas podem ter. A quem é da militância pode não enxergar, mas para quem é de fora, tal arauto da defesa da intelectualidade pura que condena os que não tem acesso ao conhecimento, nos coloca como um bando de arrogantes metidos a iluminados que temos a verdade em nossas mãos.

Durante a guerra traçada entre Bolsonaro e o STF, qual foi o principal movimento do establishment formado pela esquerda pelo centro e pela direita? fortalecer a institucionalidade do STF como símbolo da justiça. Sim, ele o é, mas é necessário entender para quem. Quem de nós tem acesso real ao STF? Quem de nós se reconhece em algum membro do STF? É sobre esse prisma que precisamos entender o que está acontecendo e a partir disso seremos capazes de compreender melhor porque parte significativa do povo se mantém alinhada ao Bolsonarismo.

Infelizmente a questão Brasil segue perigosa. Somos um país que não conseguiu democratizar qualitativamente suas redes de educação e cultura, e mantém parte gigante da sua população como trabalhadores passíveis de serem negociados barato. Temos hoje quase 600mil mortos por covid e milhões desempregados que ficam ao relento e entregues a própria sorte em um país sem estrutura.

Vivemos um país em forte depressão, cuja principal base econômica foi se voltar para commodities e onde há uma disputa fraticida entre uma austeridade e neoliberalismo de caráter mais internacional contra um protecionismo e nacional-desenvolvimentismo fraco. Ambas as saídas da disputa econômica corriqueira aqui tem fortes limitações. Em quaisquer situações, seguiremos sendo um país empobrecido e desigual, pois não dá pra traçar uma estratégia de solução concreta que se implemente em poucos anos e que seja capaz de resolver o Brasil no sistema global, garantir estabilidade e qualidade de vida ao povo, preservar o seu patrimônio natural e construído, sua cultura, seus biomas, entre outros sem melhorar exponencialmente nosso sistema educacional e de seguridade social.

A baixa qualidade e capilaridade do sistema educacional, e os baixíssimos incentivos em desenvolvimento em pesquisa e tecnologia atrapalham qualquer processo de industrialização de um país, um dos motores de desenvolvimento econômico dele. E esta foi nossa escolha política, fragilizar a educação pública em especial os centros de pesquisa, não considerá-los como estratégico para o projeto de nação. O salário médio de um técnico da indústria é, segundo site portal da indústria da CNI, por volta de R$2400 reais, valor extremamente aproximado a uma bolsa de pesquisador científico em fase de doutoramento, sendo que a média nacional da renda per capta é de R$ 1438,60 reais.

Outro elemento que precisa entrar na conta. O brasileiro, em quantidade razoável, mesmo que não clame pela ruptura democrática, não se importa se a mesma acontecer. Isso é muitas das vezes tratado pela esquerda com o viés que o Jessé trouxe, esse olhar que retrata o povo como alienado ou inculto que não compreende o significado disso. O que vale entender é que a alienação se alimenta pelo distanciamento das instituições, o povo em geral sabe o quão complexas e descoladas dele são estas relações institucionais na sua escala cotidiana. Sabe o que é esperar e morrer antes da cirurgia de risco ter data, sabe o que é ver um julgamento de um filho nunca sair da gaveta do juiz, sabe o que é ser achincalhado por PM que pede o do café, e sabe que STF é algo tão distante de si que habitam quase outro planeta.

Este é um dos problemas, o Bolsonarismo justifica sua incompetência e suas decisões políticas de desmonte social com base em uma máxima: – “estou tentando fazer mas eles não deixam” e isso cola. Sob esta máxima ele congrega o alinhamento de diversos brasileiros que seguem cansados e indignados e que enxergam a terra arrasada do Brasil pós-copa e o niilismo do caos político. Este ponto é crucial: porque defender um sistema institucional que te exclui? Por que defender um modelo de sistema onde a casta política e econômica gira a serviço de pagar o preço dos lobbystas que patrocinam as campanhas e demais? Por que manter o status quó do sistema social em um país onde a linha de heranças mantém os donos do poder por séculos a frente das decisões importantes da nação? O povo mesmo quase nunca foi convidado a participar do Brasil. Voar de avião e comprar geladeira inclusive não se encaixa em participar das decisões do Brasil, mas sim quem é dono, investidor ou lobista de empresas aéreas (só pra citar um exemplo), cadeia da economia que por exemplo não está desamparada pelo Bolsonaro, o que reforça a frase de Edmar Bacha: Bolsonaro não é uma ameaça a economia, na visão das elites brasileiras.

Talvez justamente por isso, todos que fazem contas eleitorais fiquem desesperados em ciclos de histeria militante. Ninguém é uma unanimidade, ninguém está derretido e 2022 ainda segue como uma incógnita. A polarização seguirá girando em torno de dois nomes a princípio. Ambos não interessam ao grande capital, mas o capital acabará sendo obrigado a tolerar um dos dois e 2023 não acalmará a crise. Então, com quem o capital ficaria? com o que ameaça a democracia mas cumpre a agenda econômica, ou com quem ameaça a agenda econômica mas cumprirá com a democracia? (nas palavras do economista, uma das vozes do BNDES).

Para o capital internacional nossa democracia representativa ou qualquer outra é um detalhe desde que a agenda econômica consiga avançar no sentido de seus interesses. Para nossas elites o caminho é o mesmo e somado a isso, a manutenção dos privilégios, para o povo fica a sobra da sobra e o risco de um futuro extremamente perigoso. A quem vive nos subúrbios e periferias, a ruptura democrática a muito que já aconteceu e estamos entregues ao relento e este povo segue sentindo que não tem mais nada a perder. Para a maioria, todos os nomes dados são iguais na sua falta de compromisso com os mais pobres e na busca de primeiro responder ao anseio das elites econômicas para depois tentar pactuar o que foi decidido lá em cima com o povo.

Qualquer alternativa ao bolsonarismo e ao partido militar precisará passar por uma ação que seja disruptiva ao processo em curso e legitimada pelo povo, não apenas o povo organizado militante, é imprescindível que avance pelo povo que se organiza por outras esferas de sociabilidade como o banco da praça, a conversa de bar, a fila do pão e do banco. Este povo que na fala de Jessé odiaria os intelectuais, mas que na real caga pra existência destes e de suas bolhas de iguais que habitam colóquios, congressos, vernissages, lançamentos de editais de fomento, e por aí vai.

Este é outro problema, a indignação popular que é capturada pelo bolsonarismo não deveria se legitimar por ele, visto tudo que ele representa, mas ela o legitima. Tem um dever nosso que consiste em trazer para a ordem do dia os motivos da indignação e sermos capazes de dar resposta efetiva a eles e não simplesmente ficarmos atônitos diante dos fatos políticos e movimentações de cúpula, acordos, cartas, aproximações. Frase que ouvi de um uber:

“o cara é muito maluco, mas muita gente desses aí que reclamam do cara podem ficar sem trabalhar, se eu parar num tem comida”.

O protecionismo do neo-desenvolvimentismo brasileiro, assim como o rentismo ou o fomento do capital internacional por si só não transferem riqueza ou qualidade de vida para a população. Precisamos repensar urgente nossas ações neste Brasil que está em jogo, onde a maioria absoluta de nós virou refém dos devaneios presidenciais e das forças políticas e econômicas que não nos tem na pauta central.

As eleições, se houverem, precisam ser muito bem traçadas para que o país retorne a um momento mínimo de calmaria, porém mais importante que as eleições são as ruas. Ali sim, onde o dia a dia do povo acontece que é preciso continuarmos as ações e o aprendizado da lida. O problema não é apenas 2022, mas sim 2023 em diante, e mais importante ainda, está em resolver a inserção dos mais pobres no centro das lutas globais enquanto protagonistas.

O impacto que importa não está apenas nas disputas dos personagens que vão gerir o país ou em quais grupos econômicos e de elite eles representam ou querem representar, mas sim na construção de uma saída concreta dos ciclos de pobreza e má distribuição de renda global, considerando a escala nacional que nos cabe. Neste sentido, qualquer manifestação em defesa da democracia precisa estar alinhada com a defesa dos pobres, precisa por em questão e em debate os limites do modelo atual.

Cabe a esquerda e aos setores progressistas se despirem dos cálculos eleitorais e das conversas de bastidores e retomar a busca de uma democracia de movimento. Precisamos nos capacitar a construir políticas desde a microescala até verdadeiras políticas de estado que fujam desta encruzilhada. Precisamos trabalhar na defesa das instituições constituídas, mas sem o olhar acrítico que acaba por romantizá-las e não por questões fundamentais sobre elas em pauta. E sinceramente, um Brasil grande ou o milagre do crescimento nem é o eixo da questão, o que precisamos mesmo é de um Brasil mais igualitário e melhor distribuído social e economicamente.

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Arquitetura e Urbanismo, rio de janeiro, Subúrbios

Praças e Parques para os Subúrbios

É notório que o mapa verde da cidade do Rio espelha seu recorte territorial classista. Assim como ausência de outros elementos de qualidade urbana, também nos falta a paisagem verde, o espaço livre e os respiros. Em meio a isso, vemos algumas operações interessantes acontecerem como o anúncio do Parque Municipal Nise da Silveira.

É com bom grado que observo a instauração do parque em questão, a derrubada dos muros e a ressignificação deste espaço que foi um elemento altamente segregador da sociedade. Há de se considerar por sua vez que o pensamento paisagístico e urbanístico deste parque gera um desafio importante, pois não devemos apagar a história. A solução a meu ver passa pelo olhar sensível dos movimentos que já atuam no lugar, perceber e trazer para o parque a qualidade do trabalho do hotel da loucura e do espaço travessia pode ajudar a dar esta reposta. Há de se ter cautela de não adentrar na produção do espetáculo, da arquitetura do eventismo e buscar a arquitetura da profundidade experimental e sensitiva que este lugar traz. O urbanismo pode ser uma aula viva da história que não devemos repetir, há projetos bem sucedidos no mundo em relação a isso, como por exemplo o memorial aos judeus mortos na Europa, ou Aushwitz, entre muitos outros. Precisamos pensar e trabalhar o tom e o espírito do lugar.

O Parque Nise somado a revitalização da antiga Universidade Gama Filho poderá fomentar e muito a qualidade de vida e interesse por parte da sociedade no entorno destas regiões, poderá fazer parte destes bairros reviverem um pouco do que um dia representaram na história desta cidade. O que me espanta é tentar entender porque este movimento e pensamento não perpetua nas demais regiões. Por que o projeto para o Parque Realengo por exemplo é substituir o parque por moradia condominial, forma de residência que já se mostrou incongruente para estes territórios.

É nítido que o interesse pelo lugar vem de seus atrativos, e neste sentido um parque permitiria que o bairro como um todo se valorizasse e voltasse a ser interessante para a população, fomentando assim o próprio movimento especulativo da construção de habitação. Sim, o recorte que trago tem relação com o próprio modo de operar do capital. Um modo que se tornou problemático pelo fato de que ele não necessita mais da pessoa física compradora de imóveis para se erguer, visto que o sistema de financiamento coloca os bancos, fundos privados, relações com os poderes públicos como protagonistas.

É preciso entendermos que, verticalizar só faz sentido para o consumidor se há pouca terra e grande procura. Antes de chegarmos a real necessidade de verticalização de uma região, precisaríamos ver uma demanda latente de interesse de se morar nesta região por exemplo. Isto falando apenas sobre o que é movimentado via mercado, pois sabemos que o grande problema habitacional do Brasil só é possível de resolver com política pública decente e concreta para tal.

A incongruência nas ações e pensamentos acaba que revela a falta de sentido no planejamento desta cidade, ou a falta de força atuante. Não há um plano coordenado de implementação de áreas verdes livres em uma cidade que vê áreas verdes como lote com potencial construtivo e viabilidade de negócios. Esta foi a cabeça de formação de boa parte desta cidade, para quem os grandes planos terceirizaram o traçado aos donos das glebas e seus desenhistas de loteamento.

O resultado disso traz possibilidades bem interessantes e desafiadoras a qualquer urbanista, porém ficam no campo das teorias pois quando é pensado a prática sobre o território, a decisão política segue a velha cabeça dos antigos loteadores. Mudam-se os donos de bairro mas não muda a política. Com base nisso somos impelidos a seguir vivendo em bairros que tinham tudo para ser aprazíveis, arborizados, caminháveis, festivos, e que se tornam só amontoado de pessoas tentando na micro escala resolver os problemas macro que são de responsabilidade direta do gestor público.

Que o Parque Nise seja um sucesso e represente a possiblidade de sua política ser replicada em diversas escalas onde mais couber. Que junto a ele a prefeitura desengavete projetos importantes como o Quinze Minutos Verdes (potente pra arborizar boa parte da zona norte) e a revitalização dos Cinemas de Rua. Junto a isso o principal, tenha coragem de enfrentar o sistema de mercado das terras públicas e de assumir o projeto de moradia para os mais pobres como eixo central de revitalização urbana desta cidade para que consigamos transformá-la numa cidade melhor.

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cultura, rio de janeiro, Subúrbios

DOS SUBÚRBIOS ROMANTIZADOS ONDE VIVEM OS BONS SELVAGENS

No Rio de Janeiro segregado e desigual, o suburbano é aquele que, através de um olhar tático sobre a vida tenta resistir as intempéries das escolhas políticas extremamente desiguais que comportam esta cidade. Se outrora os Subúrbios foram um intermeio entre o urbano e o rural, hoje podemos refletir sobre o mesmo termo ser um intermeio entre o a parte aceita da cidade e a favela.

Algo importante a dizer, quando falamos em favela, em subúrbio, em urbis, o que está em pauta não é a morfologia, a distância periferia-centro ou outros. O eixo principal é a forma de organizar e distribuir socialmente o povo e os recursos do território. Neste sentido podemos traçar por exemplo que: Favela, é o território onde o Estado considera legitimo matar, com anuência da opinião pública. Independente de seu traçado urbano é um território excluído dos mais básicos direitos civis como acesso a moradia, saneamento, transporte, direito, lazer, cultura.

Quando se fala em Subúrbios, o que temos é uma fusão das condições da parte aceita da cidade com a parte que a cidade não quer. Falamos sobre territórios de grande ambiguidade e discrepâncias intraurbanas. Uma distribuição de bairros de classe média a bairros mais pobres, alguns pequenos núcleos melhor estruturados comercialmente e imensos vazios urbanos negligenciados. A violência explícita que incide sobre as Favelas, não incide de mesma forma sobre os lugares que se denominam Subúrbios. Nestes a violência social se organiza de forma mais implícita, em geral pelo descaso. Ambos porém, enfrentam o viés da precariedade socioeconômica da vida como elo comum. São muitos aprofundamentos que já foram trazidos em alguns textos aqui e que continuaremos a trazer em mais textos logo a frente.

O recorte que queremos trazer neste momento consiste nos riscos da romantização. Entre as inúmeras formas de resistência social, a busca de um Subúrbio Ideal é uma delas. Esta busca não consiste apenas na reminiscência saudosista do uso da rua, das pipas, das cadeiras de quintal, ela também incide na própria construção de um sentido de identidade. Tentamos encontrar um sentido único e definido de Subúrbio, seja pela auto concepção na busca de um sentido unificado cultural que o defina, seja na busca de um perfil suburbano tipo, um padrão de referência que dê distinção ao personagem. A questão é: como unificar em torno de um sentido toda a complexidade de relações, muitas das vezes hiper contraditórias? Como traçar uma identidade suburbana que trate como iguais por exemplo os moradores da Tijuca, do Méier e do Cesarão?

As tentativas de identidade acabam por abarcar um certo nicho ou grupamento cultural com o qual consegue traçar uma linha que guie a narrativa e manter invisíveis um oceano de multiplicidades e de outras narrativas reais que coexistem com estes. O samba por exemplo, por toda sua capacidade de se capilarizar nos espaços dos territórios suburbanos apesar do status quo do projeto de nação vigente, consegue fazer um bom papel nesta costura. Porém o samba tem seu reconhecimento neste papel hoje, depois de décadas de perseguição policial e criminalização. Como pensar as casinhas coloniais, arquitetura referência de uma política de Estado que buscou nas inspirações neocoloniais (remetendo às cortes portuguesas) os signos de sua estética, pertencem ao mesmo corpo de símbolos identitários que o samba duramente perseguido por ser negro?

Um dos meios mais simples de tentar unificar consiste no não aprofundamento das questões, mantendo-as na superfície sem explorar ou dar voz aos contradições. Algo muito bem trabalhado por exemplo pelo marketing, onde até o slogan mais vazio de significado como por exemplo “coca cola é isso aí” vira uma máquina de sucesso.

Os riscos desse processo é que: sem aprofundamento, temos muita dificuldade de romper com a estrutura de segregação que conforma o território, além do imenso risco de criação e manutenção de estereótipos. E este é um ponto crucial. Para seguirmos em frente precisamos lembrar que, quem tem o poder de comando do território é quem define as políticas sobre ele.

Embora o Rio viva grandes avanços, em especial através da cultura onde os intelectuais orgânicos brotam dos subúrbios, favelas e baixadas de geração em geração, estes esbarram nos limites de quem detém o poder. E são estes donos do poder que tem a capacidade de captar as narrativas e escrever de forma mais massificada conforme lhes interessa. E é assim que por exemplo um problema do subúrbio ou favela que a elite não quer resolver se transforma em exemplos individuais de superação, ainda que o protagonista do exemplo só esteja tentando manter sua família minimamente viva.

O poder, como um ente representante da civilização, consegue por um braço manter o território sob controle e por outro braço criam a narrativa romantizada em torno dessa má qualidade. Não precisa, portanto, dar cabo de resolver as questões estruturais que garantam qualidade de vida a todos os munícipes. Ainda mais nefasto, conseguem transformar esta romantização da pobreza em mercadoria ou evento. Nesta manutenção da segregação, os suburbanos ou favelados são constantemente tratados (até pelos mais progressistas) como o Bom Selvagem de Rousseau. Talvez como um meio inconsciente de se eximir da responsabilidade de dar a este cidadão o direito a experimentar dos mesmos valores e hábitos que são destinados às partes mais burguesas da cidade pela estrutura material.

Uma frase do filósofo Wallace Lopez que sempre me diverte ao ouvir em suas palestras: “A Regina Casé gosta da favela, mas não mora na favela”. É importante termos esta consciência política e social. Romantizamos que o morador da Zona Sul não consegue apreciar o futebol suburbano, o nosso botequim o nosso futebol de domingo.

O importante, porém, é entendermos que qualquer morador dos territórios abastados pode dirigir seus automóveis até o futebol ou pegar as duas conduções necessárias para ir de uma Gávea a Olaria por exemplo, mas nem todo morador de Olaria que joga o futebol terá o dinheiro pra ir a um teatro na Gávea. Fora que, muitos moradores suburbanos sequer terão o direito de pisar numa praia sem serem taxados como marginais. Direito a cidade é também sobre isso, e não há romantismo que faça isso ser costurado com facilidade.

Assim a cidade do Rio de Janeiro segue se construindo pelos mesmos donos da bola (e do campo) embora muitas vezes mude a cor da embalagem. Cabe a nós buscar a fundo compreender como este mecanismo de controle se dá.

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rio de janeiro, Subúrbios

O SUBURBANO VAI À PRAIA

Um tipo corriqueiro de notícia acontece em todas as proximidades de verão: a disputa da cidade pelo direito de uso e frequência da praia. Quando observamos no decorrer do tempo, percebemos que este movimento não constitui fatos puramente locais ou um casos isolados. O que se constrói mesmo é um organização simbólica da praia como um direito de todos os cidadãos. O Rio conhecido como cidade balneário, apesar de ter assassinado suas duas baías, define o controle social, todos os cidadãos podem utilizar da praia mediante uma certa forma de se ser e se portar, mas o principal é que ao invés da praia ser entendida como pertencente a todos os cidadãos ela é entendida como pertencente aos moradores do bairro.

O texto abaixo foi um fragmento da dissertação defendida: Rizomas Suburbanos: possíveis ressignificações do topônimo Subúrbio Carioca através dos afetos de 2015, mais precisamente nas páginas 67 a 69. Segue o fragmento na íntegra:


Quando falamos de Subúrbios Cariocas e disputas territoriais, percebemos que a ida à praia representa notório conflito na cidade. Fazemos uma ressalva de que problematizar e se aprofundar nas questões associadas ao uso e apropriação da praia exigiria outra pesquisa. O que demonstramos aqui é como as subjetividades podem ser traçadas a pela imprensa e que discursos são ditos com isso, ou ficam marcados através disso. Neste ponto, levantamos algumas notícias de jornais datadas entre os anos de 1969 e 1991 que nos remete a estes conflitos.

Algumas notícias de jornais:

Ida à praia nos Subúrbios é uma excursão e uma aventura.
A maioria dos suburbanos passa a semana de olho no boletim meteorológico,
planejando nos mínimos detalhes um banho de mar e uma praia no fim de
semana, junto com a mulher e os filhos. (…) Sete ou oito horas da manhã, eis
o suburbano desembarcado com mulher, filhos e mochila na praia de Ramos,
onde a condução para a volta é mais fácil ou nas outras na ilha do governador
após enfrentar uma fila maior nos terminais de coletivos (…). Atravessar a
praia de volta foi a mesma coisa da chegada(…)Na Avenida Brasil a confusão
era total. Motoristas de taxi brigando com seus colegas das Kombi(…). As filas
de ônibus intermináveis (…) Novos protestos, mais empurrões e recomeça a
luta por um lugar no coletivo(…)finalmente chega em casa(…)ele, com o corpo
ainda pegajoso da água suja do mar, as costas ardendo das queimaduras do
sol, resolve tomar uma cerveja no boteco da esquina e contar aos amigos as
suas extraordinárias aventuras na praia (O GLOBO 06 de janeiro de 1969).

Zona Norte terá em janeiro novos caminhos para a Barra – Na
primeira quinzena de janeiro estará bastante facilitado o acesso as praias da
Barra da Tijuca, principalmente para os moradores da Zona Norte e dos
Subúrbios(…) (O GLOBO, 11 de dezembro de 1972).

Depois da praia, na Barra, a difícil volta aos Subúrbios – (…) equipados
com pedaços de pau e até mesmo uma barra de ferro, inspetores e motoristas
realizavam a difícil tarefa de empurrar o maior número de banhistas para
dentro dos ônibus (…). As empresas só sabem reclamar, mas não colocam
mais ônibus para o subúrbio. O que acontece é isso aí: os banhistas ficam
irritados e terminam tumultuando o embarque e a viagem. Na entrada, perto
da descida do viaduto que liga a Barra ao túnel do Joá, mais de uma centena
de passageiros se aglomerava no ponto de parada, mas poucos conseguiam
embarcar(…) (O GLOBO 17 de novembro de 1975).

Praia da Urca: um sufoco em todo fim de semana: – Para moradores,
verdadeiro transtorno: Alguns moradores da Urca estão revoltados com o que
eles consideram uma verdadeira invasão suburbana que toma conta do bairro
durante os fins de semana. (…) Iasmim se queixa dos problemas causados
pelos suburbanos. – Eles fazem parte de um outro nível de pessoas com as
quais não queremos conviver (…). Os moradores da Urca são tradicionais e
não gostam de se misturar. Não sou contra os suburbanos, mas acho que
deveria haver um espaço delimitado para eles. (…) O número de suburbanos
é enorme e o clima muda completamente. A praia fica cheia de uma gente
esquisita, que deixa uma sujeira incrível. (…) a maioria dos moradores se sente
“roubada” no seu espaço (O GLOBO 03 de fevereiro de 1987).

A viagem dos surfistas do subúrbio – Moram perto da praia, mas estão
há uma hora e meia das areias da Zona Sul. Perto do mar e longe das ondas,
eles são os surfistas do subúrbio, que de ônibus ou de carona viajam mais de
20 quilômetros para chegar à Barra da Tijuca e esquecerem da poluída e calma
praia de Ramos. (…) (O GLOBO 17 de fevereiro de 1991).


Quando lemos os relatos das idas e vindas, não importando a data, aparecem questões similares que envolvem problemas de mobilidade urbana e estranhamentos sociais. O primeiro relato de ida à praia que encontramos cita as praias suburbanas balneáveis de Ramos e da Ilha do Governador (que na notícia de 1991 já se apresentam poluídas). Segundo as reportagens, a ida à praia é ao mesmo tempo “excursão”, “viagem” e “uma aventura suburbana” para os que vem dos Subúrbios, e uma “invasão suburbana” para os que são da Zona Sul. Isso não quer dizer que há um antagonismo direto, haja vista que uma notícia se refere à ida às praias suburbanas e outra à ida às praias da Zona Sul, sem contar no distanciamento temporal que as separa.


É interessante notar que o personagem principal – “o suburbano” – em todas as notícias é visto de um ponto de vista externo, reforçando a experiência do exótico. Aqui, o suburbano se assemelha muito ao estereótipo estampado na charge de 1916. O suburbano é este anônimo que leva a família para ficar o dia inteiro na praia, sofre para conseguir condução, mas que embora chegue em casa com “o corpo ainda pegajoso”, decide parar no botequim para contar suas desventuras.


As notícias de 1972 e 1975 se correlacionam tanto no tempo como no espaço, se por um lado, em 1972, era apresentado com vislumbre a abertura da Barra da Tijuca à Zona Norte e Subúrbios, a notícia de 1975 contradiz o resultado proposto ao demonstrar que os mesmos problemas de acesso da praia aos Subúrbios, relacionados à mobilidade urbana, ainda persistiam.


A questão da falta de estrutura urbana para suportar tal movimento já tradicional nos verões da cidade é sutilmente disfarçada nos jornais como um problema do usuário, no caso o suburbano. Com isso, subvertem-se as propostas populares, de forma que a falta de transporte para atender a demanda não seja vista como um problema para a parte “não suburbana” do conflito, mas sim como uma solução plausível.


Assim, cortar transporte público se tornaria um meio de garantir a “delimitação de um espaço próprio para eles”, que na condição de “gente esquisita”, são parte de “outro nível de pessoas” com as quais “não se quer viver”, e que estes, apesar de morarem “perto da praia” (Ramos e Ilha do Governador), precisam andar “uma hora e meia para atingir as areias da Zona Sul”.


Entendemos que há um peso pejorativo na questão do suburbano quando este tenta se deslocar do território. Ainda que a praia seja um espaço público direito de todo cidadão, o suburbano é tratado pela imprensa como aquele que não deveria estar lá. Isso se reflete em diversas desconfianças urbanas, onde projetos como o Piscinão de Ramos ou o Parque Madureira são interpretados como um meio de afastar o suburbano da praia e imobilizá-lo em seu território. Citamos aqui uma notícia49 recente sobre a inauguração da praia do Parque Madureira:

(…) se a natureza não facilitou a vida dos moradores da Zona Norte — e a ida à orla pode ficar mais complicada com a diminuição das linhas de ônibus para a Zona Sul —, a solução deve surgir como um presente do Dia das Crianças (O GLOBO, 16 de setembro de 2015).

Elucidamos que há um potencial processo de captura das significações da praia. Ao observarmos os dados da extensão de praias na cidade, temos que as praias que vão da Glória até Grumari possuem 39,53km, enquanto as praias municipais referentes à Zona Norte, Baía de Sepetiba e Ilha de Paquetá somariam 44,82km de extensão, conforme dados levantados no IPP. Podemos constatar, portanto, que seria um mito relacionar os Subúrbios Cariocas a lugares sem praia, assim como sem privilégios naturais.


Importante notar também como esta subjetividade colabora com a estratégia de uso não balneável das duas baías da cidade do Rio, Baía de Sepetiba e Baía de Guanabara.


O Rio de Janeiro tem o privilégio raro de ser uma cidade banhada por duas baías, cujas políticas historicamente as negaram. Ambas foram utilizadas como fundo, porta de serviço da cidade, hoje seguem poluídas, mesmo após Rio 92, Rio +20, Rio Olímpico, Rio Capital Mundial da Arquitetura. Assim, segue o descaso e a marca da segregação urbana na qual nos inserimos.

Praia de Sepetiba 1970 – arquivo nacional extraída de : https://saibahistoria.blogspot.com/2018/06/o-rio-comeca-em-sepetiba.html

imagem destaque, fonte: https://www.facebook.com/Coreto-de-Sepetiba-Rj-668294449888034

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Arquitetura e Urbanismo, rio de janeiro, Subúrbios

AVENIDA BRASIL E CENTRO NO ALVO

O Rio de Janeiro tem vivido uma ebulição de movimentações especulativas que estão sendo lançadas separamente, mas que precisam ser lidas conjuntamente para melhor compreensão nossa. É notório que os atuais movimentos da prefeitura só terão resultado perceptível em um prazo longo de tempo. A prazo curto o principal movimento parece ser o realinhamento dos instrumentos da cidade para favorecer o setor imobiliário e de construção civil.

Citamos aqui apenas algumas propostas que nos permite pensar o que está sendo e o que será desta cidade daqui pra frente. Antes de mais nada, importante recortar que as condições de possibilidades desta escrita tem como base o que é publicado em jornais, magazines, círculos de debates entre outros.

Entre alguns movimentos:

  • Forte proposta de reaproximação do capital imobiliário no Centro da Cidade,
  • Aumento de potencial e interesse imobiliário para os bairros da Zona Norte próximos ao Centro e para os bairros da Zona Sul,
  • Venda de próprios públicos para a iniciativa privada, através de leilões,
  • Flexibilização de legislação e de parâmetros urbanísticos e de fiscalização,
  • Flexibilização de legislação de bens tombados e preservados.

Antes de adentrarmos, um elemento importante quando falamos das pressões da especulação, está na direção e sentido pra onde a cidade investe. O Rio de Janeiro pode ser lido (simplificadamente) por dois mega vetores de expansão, do seu centro caminhando para as praias oceânicas é definido o lugar da burguesia, das elites, das classes médias mais abastadas e do seu centro pro interior das baías (Guanabara e Sepetiba) é destinado aos moradores mais pobres, às indústrias e etc. Este desenho, que se iniciou ainda em tempos monárquicos, moldou o que Zuenir veio a chamar de cidade partida, e o que entendemos por cidade segregada.

Porém num dado momento, esta cidade que sempre teve seu Centro no seu recanto histórico de fundação, recebe com a proposta modernista de um levar sua centralidade para a Barra da Tijuca. Aqui, uma fronteira de disputas se abre e explica certos movimentos políticos contemporâneos. Pro carioca por exemplo, já é costumeiro ver o entra e sai de governos e ver que um ou outro território é a bola da vez dos grandes investimentos: Barra da Tijuca ou Região do Centro da Cidade.

Nos importa também colocar outra questão para o debate: A maioria das movimentos especulativos imobiliários não são feitos para atender as demandas materiais e diretas da cidade. Antes disso, eles se comportam como um dos atores que moldam os desejos que impulsionam esta demanda. Quem não conhece uma história de um parente que tinha terreno na Barra e vendeu pra comprar uma casa na baixada porque a Barra só tinha mato?

É importante a gente não naturalizar este tipo de funcionamento do movimento imobiliário, vai nos ajudar a encaixar muitas peças. Entre elas algumas perguntas a serem feitas:

  • Faz sentido para uma cidade que não tem grande demanda de ocupação investir em maior verticalização e ocupação?
  • Faz sentido o direcionamento habitacional ser prioritariamente para classe média em uma cidade onde o maior problema habitacional está na falta de política para os mais pobres?
  • Nosso real problema é a falta de pessoas ou a hiperconcentração dos recursos das terras?

Projetos como o Reviver Centro ou a Zona Franca Urbana da Avenida Brasil, quando juntados com a venda de próprios públicos, entre outros já citados, dão a iniciativa privada a liberdade de moldar a espacialidade da cidade sem que haja necessidade de grandes diálogos com os demais setores sociais que compõem. Citemos aqui as palavras do secretário de habitação ao jornal CNN:

“A gente oferece uma área de zona franca e o setor privado pode definir o que pode ser feito. A ideia é que a gente tenha uma região muito livre, mas sem deixar de lado a preocupação com o patrimônio”, disse o secretário municipal de Planejamento Urbano, Washington Fajardo”. ref: CNN(clique aqui)

Este pensamento redefine os modos de praticar o trabalho em urbanismo. Através dele assume-se o modus operandi protagonista do sistema privado de organizar, planejar e projetar o espaço. As ferramentas e operações propostas pela prefeitura promovem um caráter de gestão onde a lógica da iniciativa privada passa a ter um canal preferencial na construção do pensamento da cidade. Vale entender que isso não é novidade, o urbanismo sempre esteve nesta lógica: grandes intervenções em geral são frutos de grandes investidores privados. Se há novidade, ela passa pela readequação do instrumento estatal ao novo modelo de negócios.

Talvez uma diferença importante a cogitar está no fato de que, já faz tempo que a participação popular nas decisões sobre seu território fora minada, a bola da vez dos modelos atuais parece ser a participação estatal. Muito significativo de se perceber esse movimento a cada nova medida implementada, seja nacionalmente pelas propostas da reforma administrativa, seja no município pela redução do peso dos órgãos de controle, planejamento e fiscalização da prefeitura. Assim, mesmo que o novo Centro vingue, ele seguirá referenciado numa lógica financeira e econômica da Barra-tijucanização da vida que vigora nos dias atuais.

Há um ponto que é crucial. Não há debate real sobre o público, mesmo os grupamentos mais fortes de resistência que tendem a esta busca esbarram no desencaixe e imobilidade com relação ao povo. E este desencaixe atua de maneira firme. Se hoje um governo passa o trator pensado quase sem resistência ou contraproposta de amplo amparo popular, em muito se deve ao descaso ou falta de interesse ano a ano dos grupos organizados em lidar com as questões da cidade de forma mais ampliada.

É curioso ver como por exemplo, setores mais progressistas desta cidade deixaram parte significativa do território mais pobre ao relento de políticas clientelistas que ocorriam praticamente invisíveis da opinião pública. E foi neste setor de controle clientelista que a base simbólica do modelo de cidade atual foi legitimado. Foram anos de venda do sonho Barra da Tijuca, quem não lembra das famosas crises entre os Emergentes da Barra (termo usado pra distinguir esta classe média em ascensão da tradicional classe média zona sul)? Assim o que temos hoje? Uma parte importante de resistência organizada, muitas das vezes de base também na classe média que não consegue se aprofundar nos códigos das populações mais pobres pra entender quais são suas reais demandas, anseios, símbolos.

Se o sonho americano é a casa em um suburb, o sonho carioca a partir dos anos 70 é morar no condomínio próximo ao mar oceânico, passear no shopping, curtir a tardinha no bar famoso. Nisso o Centro também perde simbolicamente, afinal, as águas do Porto Maravilha são as mesmas da Praia de Ramos.

A volta ao Centro não mobiliza tanto as massas mais pobres da cidade, o que é uma tragédia pois se há um vetor de crescimento e renascimento para o Centro seria justamente romper com a lógica das distinções sociais e trazer os mais pobres para ele, o que permitiria uma dinamização econômica da cidade pela cidade, pelos seus cidadãos.

Este desencaixe causado pelas disputas entre barra e zona sul, entre movimentos predominantemente de classe média organizados progressistas e retrógrados torna os debates ainda mais difusos, pois parte vulnerável da cidade fica a mercê de qualquer loucura. Para um lado da cidade qualquer proposta pode rolar (vide um BRT) e fica fora da agenda de discussão e de defesa pelos setores organizados. Este debate fica enfraquecido pela ausência de um movimento de massa, o que torna toda discussão muito mais complexa.

Outra coisa pesa nestes projetos também é a escala em que as coisas acontecem e isso é histórico. Para haver interesse do setor privado, é preciso haver possibilidade de lucro, e isso muitas das vezes se dá no aumento da escala. Porém, os exemplos mostram que este tipo de operação demora décadas pra se consolidar e nem sempre dão o resultado prometido. A abertura da Avenida Presidente Vargas por exemplo, que ocasionou a expulsão dos mais pobres para as áreas suburbanas reflete bem isso, até hoje a avenida não teve seus vazios urbanos plenamente preenchidos, não se contemplou como tal, o Porto Maravilha (este mais recente) também não. Sinais de uma cidade que não tem esta demanda toda que se deseja e em nome da qual leiloará próprios públicos e flexibilizará legislação.

A enunciar uma propaganda:

A Avenida Brasil vai voltar. Uma das propostas do novo Plano Diretor da cidade é criar a Zona Franca Urbanística (ZFU) da Avenida Brasil. Isso significa que, numa faixa de 500 metros pra cada lado da avenida, não haverá parâmetros urbanísticos fixos e os pedidos de licença pra construir nos terrenos serão analisados caso a caso.

O objetivo dessa liberdade é facilitar projetos imobiliários nas proximidades da avenida, tanto residenciais quanto comerciais, pra reverter o esvaziamento e a degradação urbana que já duram pelo menos três décadas.

O que a prefeitura do Rio faz é dizer a sua população que parâmetros urbanísticos atrapalham. Também assume que o protagonista das soluções urbanas é a iniciativa privada do setor imobiliário apenas. Este mesmo setor que no primeiro governo Paes, a época do Porto Maravilha e do MCMV direcionou seu olhar para as glebas baratas da Zona Oeste, e alguns pólos industriais da Zona Norte, criando condomínios em quaisquer cantos sem os devidos cuidados urbanos, paisagísticos e arquitetônicos. Já falei um pouco em outros textos, como o Pilhagem Urbana do Rio.

O que fazer?

Bom, o primeiro passo é iniciar o longo processo de reencontro com a sociedade. Não basta apenas resistir se não formos capazes de construir uma proposta diferente. Proposta essa que passe por todas as frentes de debates, desde processos administrativos mais abertos que fujam do viés purista estatal x privado até o pensamento técnico científico mesmo, discutido in loco com o morador da cidade. Precisamos parar de falar da favela sem incluir na roda de conversa por exemplo.

Precisamos também dar viabilidade técnica para que propostas de pequena e média escala sejam interessantes. Não há mais espaço cabível na atual crise global para que todo o sistema econômico da construção civil gire em torno de megaempreendimentos. Assim como também é antiquado no mundo acreditar que as soluções sairão da prancheta de um ou dois grupos determinados. Precisamos retomar os esforços deste confronto e colocar a contradição da sociedade na mesa de discussão e de construção das propostas.

É importante discutirmos o dinheiro. De onde vem, pra onde vai, quanto custa e como se consegue. É inaceitável ver uma placa de: Esta obra custou X milhões sem que seja clareado os caminhos que são traçados para que estes milhões apareçam na conta de quem quer que seja.

Para que isso ocorra é preciso retomarmos a discussão do espaço, da paisagem, do ambiente urbano na escala comunitária. Atuar junto a espaços de âmbito comunitário promovendo educação urbana e aprendendo também a respeitar e entender as formas de espacializar do povo. Não conseguiremos dar uma resposta concreta que se contraponha ao sonho carioca da barratijucanização sem compreender as bases materiais que hoje legitimam esse desejo por exemplo.

O campo da arquitetura e urbanismo precisa ter um esforço militante de sair de sua própria alienação junto a cidade. Não podemos reduzir as discussões sobre os grupos e territórios mais pobres do Rio: Favelas, Subúrbios e Baixada pelo romantismo ou invisibilidade. Pra um lado da cidade qualquer coisa serve. Precisamos romper com o Urbanismo colonizador que lá atrás definiu pra que lado a cidade rica habitaria e em que lado a cidade pobre habitaria. E para tal precisamos modificar os círculos em que discutimos, sair do entorno dos mesmos fóruns e dialogar mais com ourtos fóruns. O urbanista no Rio pouco se aproxima dos professores de geografia, pouco se aproxima das associações de moradores ou de um simples caminhar de lazer num parque da AP5. É preciso de nós, enfrentar as contradições com tranquilidade e diálogo, não reduzindo as discussões.

O traçado da cidade tem ligação direta com os atores que conseguem, num dado espaço de tempo ter poder pra trazer e implementar suas propostas. Aos pobres em geral cabe a sobra tática, sobreviver e levar a vida a base de gambiarras pra responder a ausência e aos erros das escolhas políticas. Se perguntar ao povo que Avenida Brasil o povo quer, o dia a dia dela já mostra a insatisfação. Porém bastou um dia da mesma fechada e vimos potência que estamos deixando pra trás.

Av. Brasil vira área de Lazer – O GLOBO – https://oglobo.globo.com/rio/avenida-brasil-interditada-transformada-em-area-de-lazer-12254913

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