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7 de abril: Dia Mundial da Saúde

Neste dia, apesar de ainda termos caminhos a avançar, já temos muito a celebrar. Embora vivamos em um país empobrecido e desigual, o nosso sistema de saúde consegue ser um exemplo robusto de que políticas de Estado destinadas ao povo podem ser realizadas. O que o SUS tem a nos ensinar em termos de organização política? Este texto será um pouco sobre isso.

O SUS modificou por completo a forma como tratamos a saúde, entendendo-a e assumindo-a como um direito universal do povo e como algo muito maior do que o simplismo de: tratar uma doença de um indivíduo. Alguns de nós hoje somos sequer incapazes de lembrar dos modos de funcionamento do sistema de saúde do país antes do SUS. Como conseguimos implementar uma política de Estado firme como essa em meio às muitas intempéries, revezes e crises de classe?

Primeiramente importa entendermos que nosso sistema atual é fruto de uma luta gradual e constante produzida por inúmeras mãos. A política de saúde só se torna possível de nascer em um país como o nosso devido o trabalho árduo de uma enormidade de cidadãos organizados nas redes de construção das mesmas. Falamos assim, de um trabalho que é acima de tudo coletivo, interdisciplinar e por que não dizer: militante.

Nada nasce da noite para o dia, se desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) o direito a saúde é vinculado ao direito à vida de todo ser humano, podemos dizer que, apenas na constituição de 1988 que o Brasil conseguiu inseri-lo como direito fundamental de todo cidadão. Tal direito é conquistado constitucionalmente a duras penas como resultado das imensas lutas do movimento da Reforma Sanitária que entendem que a saúde deva ser um Direito de todos e um Dever do Estado.

Desde a década de 70 até 88 o movimento se organiza no fortalecimento de encontros, simpósios, conferências, criação e fortalecimento de entidades profissionais dentre outros. Este trabalho, junto ao seio do povo foi de fundamental importância para a construção do novo conceito de saúde que viria a ser implementado no país. Se antes, saúde era algo destinado a alguns apenas, já nas décadas de 80 ela fora vista de forma abrangente e integradora da sociedade. Da porta do hospital ao saneamento de uma cidade, tudo era trabalhado na construção do sistema.

É esta multidão que constitui potência política suficiente para produzir no país um instrumento que garanta universalidade, equidade e integralidade de saúde a todos nós, ainda que muito precise ser feito para tal. Assim como todo projeto político, nada se completa ou termina em si mesmo, precisamos seguir a construção e as lutas a cada dia para garantir a consolidação e melhoria completa do mesmo. Entre as décadas de 70 e 90 (quando a lei é regulamentada) muitos passos foram dados nesta construção compartilhada.

Uma das maiores lições que a construção do nosso sistema de saúde nos traz é esta: não há saída por política que não envolva uma concepção popular para a mesma. O niilismo que enfrentamos hoje se dá por nossa atual incapacidade de organização coletiva focada em algo para além de um mero processo de espectador e torcida diante de disputas eleitorais de personalidades. A história por sua vez nos mostra que, o que menos importa na construção popular do nosso direito a saúde são os personagens, o mais importante mesmo está na rede de possibilidades que abrimos e que se mantém aberta para esta luta.

O SUS não é resultado da política de um homem ou de uma categoria apenas, sequer teria algum avanço significativo se assim o fosse. Ele é fruto do sonho de muitos que dedicaram e dedicam algum tempo em propor, em construir, em chegar junto nesta frente, do mais simples trabalho de base junto ao povo até os mais complexos trabalhos de gestão e planejamento nacional. É sob esse prisma que nossa Saúde é uma construção política! É um erro e porque não dizer uma antipolítica, quando reduzimos quaisquer construções a um viés pasteurizado e cristalizado de forma dentro das dinâmicas da vida social. Como as águas do rio de Heráclito as dinâmicas das lutas sociais acrescentaram bandeiras, formas, modelos, projetos, textos de lei ao grande corpo que se tornou o SUS. Ninguém precisou prender o pensamento a uma cor, um dogma ou um nome sequer.

Nosso direito a saúde aconteceu com o trabalho colaborativo produzido a cada dia, em cada esfera do cotidiano onde lutamos por uma qualidade de bem-estar. Sua luta é um modelo, seja na esfera individual, familiar, comunitária ou de estado, cabe a nós, enquanto cidadãos que tem interesse nas lutas comuns, seguir em frente, fugir das artimanhas dos laços menores e retomarmos as organizações para construção de um Brasil maior, com equidade, justiça social e direitos amplos e universais a todos os brasileiros.

Dentro disso, nós arquitetos, onde podemos nos posicionar? Um início é: garantir o direito fundamental a habitação, cidade e saneamento e fazer-se cumprir o artigo 6º da constituição. Se sonhamos em construir um dia neste país o SUS da Arquitetura, precisamos antes de mais nada, inserir constantemente a arquitetura nas pautas e formulações do SUS. Assim também, precisaremos enfrentar nosso olhar exclusivista e corporativista e aprender, como aqueles que construíram esta história nos ensinaram, de que as mudanças acontecem assim que nos abrirmos e ampliarmos a todos os ramos da sociedade que contribuem na boa formação do espaço vivido.

Que nossas lutas pela saúde universal sigam sem esmorecer e sigam sendo exemplo do que é a boa prática política. Só assim poderemos retomar os rumos, romper com a atual crise que este ciclo bianual de rinhas em torno de figurões messiânicos produzidos pelas grandes ferramentas de marketing eleitoral. Lembrando que, esta imensa conquista que é nosso sistema de saúde pública é fruto destas lutas.

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Nos subúrbios a ditadura nunca acabou!

Ela segue firme nas rondas da PM, no carro da linguiça, nas mãos que tem cheiro de morte. Segue a cada em cada silenciamento. Tem ruas onde andar as 22h se torna arriscado, ou você será vítima ou será confundido com um possível meliante. Meliante, sinônimo de vagabundo, termo que até algum tempo atrás tipificava um crime que hoje já não é mais. Porém o termo está aí, e com ele a tipificação das pessoas. Nos subúrbios e favelas a gente tem que andar com documentos sempre em mãos, quiçá um comprovante de residência, pois aqui ela nunca acabou.

Aqui tem que se tomar cuidado! Nos tempos onde as classes média e abastada progressistas do país conseguiam construir uma resistência a 64, apanhavam, morriam, eram torturadas, nasciam também os cavalos corredores, os matadores e a milícia. Ali se estruturou a cultura da morte e da chacina, o alvo apenas mudou, foi para um canto da cidade mais silencioso e invisível e se tornou mais palatável. Quantos Herzogs perdemos nas guerras das favelas, ainda jovens e adolescentes? Quantos corpos seguem desaparecidos pelas ruas da baixada? famílias que nunca mais viram seus parentes, muitos deles crianças cujo crime naquela rua seria o lazer de uma festa de bacana.

Na Copa das Copas, os porões da ditadura que estavam operando no Haiti também operaram nas favelas, estavam exército, polícia, milícia e certas igrejas construindo o mais duro cerceamento de ir e vir garantindo aos brasileiros e estrangeiros que podiam pagar a fortuna de ingresso da copa tivessem o sossego e tranquilidade de não ver nossa miséria humana. A regulamentação da Garantia de Lei e Ordem em 2013 e as mais de 30 operações militares subsequentes no país entre 2013 e 2018 também foram importantes máquinas de fortalecimento desta casta. Só como adendo, o período de 2014 a 2016 vivemos os mais altos índices de pessoas desaparecidas por violência dos últimos anos, com média de mais de seis mil por ano, imensa maioria da Baixada Fluminense, Subúrbios e Favelas.

A nós que somos do Rio, lembramos dos caveirões que saiam a noite pra matar na favela e viraram atração turística na porta do Maraca. Os poderes escolheram perdoar sem perdoar, premiaram os generais e coronéis dando-lhes legitimidade. E hoje é o que temos, a presidência das milícias.

Às vezes me perguntam o por quê dos mais pobres não se assustarem tanto com a lógica dessa gente? Não vejo uma resposta tão clara, mas talvez o indício principal passe por aí: Para os mais pobres, a ditadura nunca acabou, governo a governo ela está aí, a cada dia com uma máscara diferente, vislumbrando como manter a rede de negócios, acharco e chacinas. A ditadura virou nosso cotidiano, e sobrevivemos nas brechas e com base nas leis dela. Não há primeira instância para quem é pobre, não há STF, esse universo é longínquo e pertencente a outra casta social, o pobre tem na frente a lei do cão e a prece pelo milagre.

Vamos precisar de muito peito e coragem pra enfrentar definitivamente isso tudo. Enfrentar com projeto político, reconstruir um sistema de segurança pública cuja função seja a proteção, investigação e prevenção, retirando dele este modus operandi enviesado cuja base é a suspeita individual com viés racista, a operação espalhafatosa pra sair na mídia e a corrupção que mantém tudo girando, ninguém chamaria Tom Jobim de meliante.

Sim, ela, a doce corrupção, a nota de cinquenta caminha pela cidade. Papel moeda que vira canudo pra PM cheirar pó depois de matar o garoto que lhe vendeu, vira oferta na igreja que é usada pra lavar dinheiro para o sistema vira o troco da carteira do filho do juíz que vai fumar seu baseado enquanto bate palma pro por do sol da cidade maravilhosa. Ali, onde o Rio é cidade maravilhosa, não passa o carro da linguiça, ninguém precisa provar que trabalha, ninguém precisa andar com nota fiscal da bicicleta no bolso, ali se é livre e ninguém morre assassinado porque acendeu um baseado na praia do arpoador, ao contrário vira hype.

É isso, quando os porões da ditadura sucumbiram de atacar a classe média que lutava por liberdade, os seus assassinos foram também anistiados e ganharam um espaço pra chamar de seu, pra ser os novos porões. Com base nos batalhões da Policia Militar, saíram a praticar todo o seu conceito e este novo porão chamamos de Subúrbios, de Favelas, de Baixada Fluminense. É ali, onde os mais pobres moram, não tem voz e nem liberdade de ser quem são, como são e andarem por onde quiserem, sem viver de perto o cotidiano da violência endêmica deste Estado.

1964 nunca acabou e isso precisamos ter na mente e no coração da gente.

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Atingimos o volume morto eleitoral

Iniciarei aqui usando um termo do camarada militante da cultura Pablo Meijueiro: “atingimos o volume morto” das estratégias de coligações. Dito isso, inicio este texto (que assim como muitos outros meus) tende a desagradar boa parte da militância ufanista. O jogo das peças políticas começou a desenhar um quadro muito curioso na polarização. Primeiro vamos elencar alguns movimentos:

  • A aproximação de Lula e Alckmin, que significa uma tentativa de aproximação de Lula com parte significativa da elite brasileira que não se sente confortável com o Bolsonarismo,
  • A aproximação de alguns partidos de esquerda como o PSOL ao projeto,
  • O movimento das mesmas peças em torno do fortalecimento da polarização eleitoral na disputa Bolsonaro vs Lula,
  • A ausência de otimismo popular em torno de quaisquer dos projetos eleitorais aqui apresentados,

Bom, um primeiro trabalho que começamos a notar é a dificuldade de se constituir uma campanha de marketing que consiga alinhavar tudo isso. Na cabeça popular, que acompanhou ano a ano um nome como o Alckmin/PSDB ser dilacerado pelas campanhas do PT, nunca soará fácil compreender tal aliança, ainda mais vinda com um política que almeja o poder presidencial. Todos aqueles que se colocam como um centro, um moderado, ou alguém que não se encontra à esquerda do espectro ideológico enxergará isso como algo puramente eleitoreiro e oportunista, talvez até como um desespero pela volta ao poder pelo poder.

Para as forças a esquerda, todo este quadro do volume morto representa algo pior. Partidos que se constituíram como uma alternativa de renascimento da esquerda, simplesmente definharam ao aceitar tal projeto posto. Podem assim, cair no isolamento completo, não serão reconhecidos como uma possibilidade de mudança por parte da população que almeja isso e também não serão aceitos pela parte mais centro direita. A estes, só restarão as migalhas do poder que cairá da mesa (caso o projeto vença o pleito).

É realmente triste ver a decadência deste projeto, ver que o povo mesmo, este de onde a esquerda deveria nascer e para o qual deveria construir, está fora da contabilidade dos marketeiros da política. As alianças primordiais do Lula são com o Pato da FIESP, o mesmo que foi acusado do golpe e é com este que a esquerda hegemônica vai caminhar. Quem não abraçar isso será taxado de bolsonarista, jogo da direita, sectário, e qualquer outra patifaria de argumento ad hominen possível de ser gralhado nas redes sociais organizadas para o cancelamento.

Lula e Boulos são quadros de momentos históricos únicos. Assim como Lula nasce politicamente do seio das lutas trabalhistas, potentes para mobilizar parte significativa do povo, Boulos nasce do seio das novas lutas contra a precarização, a luta pelo direito a cidade, habitação, mobilidade, para os mais pobres. As escolhas porém deste segundo parecem frear a potencia desta história, fica para trás a força popular que o emanou em nome de um projeto maior que é a unidade liberal. Aceita-se recuar na disputa do Executivo do Estado ou do Federal em nome de apoiar um projeto de poder que inclui aquelas forças que pactuam com os principais adversários de classe de sua base (especuladores imobiliários, grandes empresários, entre outros).

É trágico ver que a história busca ciclos e que a tática da esquerda segue cristalizada. O governo Lula e Alckmin representará a continuidade do governo liberal que a esquerda tanto diz combater, e este governo será assumido socialmente pela tinta vermelha desta mesma esquerda. O ônus deste governo para o povo recairá sobre a esquerda. Chega a ofender quando vemos Pinheirinho ser usado de palanque eleitoral em um projeto que tem a tiracolo elevar a vice as forças econômicas que, na condição de governo de São Paulo, produziram um massacre repleto de abusos policiais que chegou a ser denunciado na ONU. A operação em Pinheirinho tem todos os adornos historicamente construídos como método policial e miliciano. Nada neste fato difere da base material e simbólica que deu o poder ao Bolsonarismo. Portanto, nada neste palanque se torna alternativa concreta de mudança social para este povo.

A escolha de Boulos não foi revolucionária ou potente. Pôs no freio das possibilidades reais de produzir mudança e assumir o conforto eleitoral do cargo legislativo, onde pode manter-se por anos sendo eleito com seu nicho de votos. Tudo ocorre em nome desta contagem de votos e partilha eleitoral que não chega e não toca mais o anseio do povo.

Junto a isso, vemos uma campanha massiva de tentativa de convencimento dos jovens a tirar o título de eleitor e votar. Sim, pois votar passivamente se tornou o único papel político do povo que realmente importa para esta projeto. Vemos uma campanha que beira o assédio moral aos mais jovens, público que nasceu ali por volta de 2005 e 2006 e que começou a entender um pouco de seu lugar no País por volta de 2014, isso é, já na crise e terra arrasada dos pós megaeventos (copa e olimpíadas). É de um otimismo muito grande esperar que estes jovens que não enxergam mais representatividade em nada do que está posto, assumam o papel de protagonistas da vitória eleitoral desta estratégia. É capaz de muitos destes jovens ainda votarem em um Bolsonaro na vida e serem xingados pela máquina militante das esquerdas.

Partimos do pressuposto que por ser jovem ele deve votar na esquerda (é um cânone divino estar do lado certo da história). Esta mesma esquerda que ele não vê atuando em absolutamente nada além de pequenos nichos com discursos pré-prontos e que muitas das vezes beira um certo cinismo. Há de pensar: Estes jovens, assim como boa parte do povo enxerga com clareza que, em meio a pandemia, quando explodiu uma possibilidade real de Fora Bolsonaro devido o mesmo estar literalmente forçando a morte da população, as organizações de esquerda esfriaram quaisquer manifestações antes que tomasse vultos incontroláveis. Enxergam com clareza que o fascista de ontem virou o amigo e vice de hoje, que o roubo do MEC não gera uma manifestação organizada ou greve, e que interessou a estas forças progressistas que o Bolsonaro permanecesse presidente até a eleição.

Veja que, a base bolsonarista das igrejas neopetencostais que se tornaram máquinas de poder e lavagem de dinheiro (uma ofensa a fé do povo), suga dinheiro do sistema de educação do Brasil e isso não virou uma manifestação de massa no dia seguinte. A esquerda parece não ter coragem de assumir a corrupção política como pauta para si, uma pauta que capitaneia a indignação do povo não é trabalhada por nenhum grupo político organizado.

Me perdoem se usei a expressão -projeto de poder-, não cabe projeto no que está dado, o que temos é uma estratégia de troca de personagens no jogo político, projeto exigiria outra construção. A polarização reflete o nosso fracasso em qualquer tentativa de alternativa a tudo que está dado, aceitamos ou fomos entubados pelo jogo político onde o fim disso tudo pode ser trágico. A esquerda como conhecemos seguirá morta, morrerá vença quem vencer, mas talvez ela precise morrer para renascer. A estratégia Lulista de garantir-se na política do establishment e usar o Bolsonaro como escada eleitoral, minguando toda e qualquer força que seja autônoma ou possibilidade a isso tudo pode dar com os burros n’água, pois querendo ou não, mesmo que vença, não será simples garantir o engajamento popular para a manutenção do poder.

O que mais me incomoda nisso tudo não é o pragmatismo do jogo político eleitoral. O povo toparia o pragmatismo pelo pragmatismo, votar num nome como se este fosse o mais do mesmo, quantos não são eleitos assim? O que incomoda mesmo é o cinismo de pintar, o tempo todo, as artimanhas e movimentos das peças e do dinheiro envolvido nisso como um jogo do bem e do mal e como se os fins justificassem os meios de uma revolução lá na frente que nunca virá.

Aqueles que não aceitam a chantagem e o assédio moral eleitoral serão vistos como inimigos, e falas e textos como esse serão vendidos como mais incômodos do que um jantar com o Alckmin, cujo prato pagaria a cesta básica de famílias inteiras que estão passando fome nesse Brasil. E o desespero que começa a bater está justamente aí, os mapeamentos estão mostrando que ano a ano, a chantagem e o assédio funcionam cada vez menos e o povo se torna cada vez mais descrente das organizações coletivas que deveriam promover mudanças e engajamento de base e nas bases, mas são minadas ou aparelhadas por este jogo.

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O CARNAVAL QUE NÃO ACONTECEU, MAS ACONTECEU

Primeiramente, este texto é um produto de um pensamento coletivo, muitas vozes ecoaram e conversaram e isso convergiu nestas pontuações que aqui trago.

Acima de tudo, nunca defendi a realização da festividade em meio a pandemia, considerei uma precipitação o anúncio lá atrás ainda em 2021, pois o mesmo colocou milhares de trabalhadores do carnaval em linha de ação em um momento em que a pandemia ainda não se mostrava tão controlada assim. Segundo: pior que a realização do carnaval como conhecíamos foi a solução proposta, um falso cancelamento. Porém, apesar de não estar na agenda, ele esteve e aconteceu.

Foram inúmeras as festas privativas, lotadas onde todos sabemos que os controles de mitigação da covid são inexistentes, ou como diz a famosa alcunha, para inglês ver. Além do caráter de festas privadas, foram experimentados modelos de negócios novos a partir das festividades, entre eles destacam-se além dos blocos privados, os minidesfiles das escolas de samba. O carnaval de rua não deixou de ocorrer, ele aconteceu por linhas de fuga e não mais pelos blocos tradicionais que já há alguns carnavais estavam no sistema de fomento do megaevento.

Nos subúrbios, as turmas de Clóvis resistiram. Suas saídas repletas de foguetórios foram notadas por inúmeros moradores que sequer sabiam da existência deste tipo de evento. Bares lotados, ruas cheias, um povo que simplesmente não consegue mais conviver sem o encontro presencial e que não suportou mais um ano sem evento. O que o feriado mostrou foi: a festa em si não morrerá, independente do quanto se tente estragá-la para encaixar em um modelo comercial, porém ela pode, e muito, se modificar a ponto de perder seus elementos de fundamento.

O teste de comercialização da festa teve como principal resultado a meu ver uma fragmentação do sentido coletivo dos eventos, os minidesfiles que obrigaram escolas a eleger aproximadamente uns 80 componentes de uma gama de 2500 foliões é passível de criar uma realidade paralela nas escolas, uma quantidade ínfima que de longe não mostra o poder de formação de uma agremiação e que, como dizia o Império Serrano, segue escondendo gente bamba. As escolas com certeza saíram as mais prejudicadas, pois, além de retornarem ao trabalho árduo mais cedo (vide os barracões, ensaios de comunidade, ensaios de bateria, etc) ainda seguirão trabalhando em meio a pandemia até o dia do desfile oficial em abril.

O sambódromo se tornou um dos únicos espaços apagados e vazios da cidade neste fim de semana, o que já demonstra o peso simbólico da tragédia, diferente do ano anterior, onde apesar de não ter o carnaval a apoteose brilhou em cores celebrando todas as escolas de samba que por ela passa. Este mesmo sambódromo que um dia foi uma arquitetura pensada para a celebração do povo e que já vem sofrendo com o desmonte de sentido demarcado pelos ingressos caríssimos e camarotes que preferem fazer uma festa rave em meio aos desfiles (sim, é possível pagar caro para ir ao sambódromo e não ouvir samba). A mercantilização das escolas seguiu mais um passo na escala, e será preciso muita resistência popular para que o próprio povo, que é fundamento da escola não seja excluído de vez da festa.

Quanto ao carnaval de blocos, creio que um grande impasse se deu por conta de uma tradicional máquina de controle, o fomento cultural. Uma vez que um sistema autônomo é capturado pelo sistema de fomento cultural e passa a viver disso ano a ano para realizar sua atividade, a ausência deste fomento não significa o retorno ao modelo autônomo anterior. Creio que nisso muitos blocos se perderam, sem carnaval de rua e sem fomento, muitos partiram para a festa privada como possibilidade de fazer alguma renda, outros nada fizeram.

As ruas, porém, são um espaço político do carnaval, lembremos que mesmo a apoteose é uma rua da cidade. E rua vazia e carnaval não combinam. O povo fez, do seu jeito, o carnaval para além do carnaval. Basta dar o feriado e o povo retoma as ruas.

Com isso o sistema fagocitou o modelo de gestão vigente até então, experimentou novas modelagens de negócios (como os minidesfiles e blocos de clubes) e deixou as ruas a novos embriões de blocos autônomos que não precisam de estrutura ou verba para acontecer. Assim, a prefeitura realizou um carnaval mesmo dizendo que não o faria e se eximiu de preparar a cidade para a tomada das ruas.  Este modelo das ruas, porém dura pouco, basta um carnaval com ruas autônomas em protesto (como já foram alguns bons carnavais) e tudo volta a ser controlado a ferro e fogo e quem sabe corda e ingresso.

O que cabe a nós? Como bons Clóvis, resistir, confrontar, se divertir e meter medo, porque sim, Clóvis meus amigos é pra meter medo, sem romantismos de um passado que não volta mais.

Fica a lição, aos blocos e escolas, também precisamos lutar pois o modelo posto é o carnaval do não povo que vai brigar para expremer seu tempo de desfile entre um episódio de BBB e um filme repetido, um zé carioca batendo caixinha de fósforo para o pato Donald ver. E fica a crítica ao cinismo de um sistema político que usou da bandeira da saúde pública para cancelar uma das festas populares mais importantes que temos, mas que no fundo só fez reorganizá-la em outros moldes econômicos onde todos os eventos privados foram repletos de aglomeração e covidário. Não podemos entregar o carnaval a esta modelagem, se assim fizer, já adianto que é melhor baixar os estandartes e enrolar as bandeiras, passou do tempo dessa massa popular que constrói a história que a história não conta assumir-se mais Clóvis e fazer em abril um carnaval para meter medo no sistema S.A. que tenta financeirizar tudo.

original publicada em: central dos bate bolas, twitter: https://twitter.com/centraldosbt
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Fragmentos de uma luta de classes carioca

A ideia de uma identidade carioca, ou uma carioquisse, surge de um recorte específico e estereotipado da cidade do Rio. Esta que já foi capital nacional e viveu anos de pujança. Esta identidade a meu ver se demarcou por um recorte geográfico muito bem definido, a escolha de uma vertente de espraiamento e especulação voltada à burguesia e as elites tanto cariocas quanto nacionais.

Assim, criou-se a imagem de Rio de Janeiro voltada ao eixo Zona Sul da cidade. O próprio termo Zona Sul nasce deste processo de autossegregação (há pesquisas muito importantes que explicam melhor esse momento). O lugar do carioca nesta construção se divide pelo seu recorte de classe. Para a burguesia e todos os que podem pagar, destinou-se o eixo de crescimento situado entre o oceano e os maciços, e para o restante da população destinou-se dos maciços ao interior do continente (simplificando o recorte).

Neste sentido, podemos entender que, se por um lado o capital cultural, simbólico, narrativo da cidade que vence historicamente como verdade de representação foi forjado em uma parte desta (mesmo que capturando diversos elementos da cidade como um todo), ao outro lado, ficou o relento de fazer sua própria história, porém sem que esta esteja na oficialidade das narrativas, exceto quando domesticada pelos que escrevem e tem voz.

A complexidade do Rio é que sua construção cultural/territorial não é dicotômica, há nuances das mais diversas que surgem no intraurbano. Entre as muitas nuances vou destacar 3 grandes topônimos: O Rio (retratado pelo eixo centro-sul estendendo-se a Barra da Tijuca e Recreio), Os Subúrbios (retratados pelas Zonas Norte e Oeste excluindo-se Barra e Recreio), as Favelas (retratado por lugares de ocupação não formal que se encontram pulverizados pela cidade como um todo).

As favelas sempre foram denotadas como o lugar que deve ser expurgado, desde termos como área de risco, até o estigma de território da violência, a favela é o território onde o Estado tem liberdade garantida pela opinião pública para executar o que quiser, independente das leis. As favelas resistem a morte, a remoção, a ausência (ou presença torta) do Estado e a presença das disputas mais viscerais de poder e espólio sobre o direito a vida.

Os subúrbios por sua vez, expressam um sombreamento difuso. São territórios legalizados, em geral propriedades privadas destinadas aos mais diversos tipos de pobres que, em algum momento da vida tiveram condições de adquirir um bem, um imóvel.  Ainda que muitas vezes, tenhamos bairros tão ou mais pobres que algumas favelas, há um caráter de origem formal no território. Além de formal, há uma relação de distinção e heterogeneidade na constituição dos mesmos.

Assim como não podemos dizer que o tratamento dado ao Vidigal é o mesmo dado ao Cesarão, também não podemos dizer que o tratamento dado ao Méier é o mesmo dado a Honório Gurgel. E são justamente nestas disparidades que a busca de uma certa identidade se torna limitada. O que unifica as lutas das favelas, antes de uma identidade favelada e periférica, é a disputa de classe, o desejo de que a máquina do poder pare de matar os moradores deste lugar. Para os subúrbios esta discussão é mais complicada, pois não há por parte do Estado um ataque claro aos territórios. A PM não passa da mesma forma nas ruas da Vila da Penha como passa nas ruas de Costa Barros, por exemplo. Este tipo de relação torna complicado a construção de um sentido comum e de elementos de igualdade entre os dois bairros (base para a construção de sentido de identidade).

É com base nisso que temos que lidar na hora de produzir nossa história e nossas lutas. Uma identidade suburbana, a meu ver é cada vez mais inviável de se constituir sem que a mesma se reduza a um estereótipo domesticado, um Zé Carioca contemporâneo, um Zé Pelintra que anda pela Lapa pra tentar chamar a atenção de gringos. O que precisamos compreender é a construção de uma emanação de enfrentamento de subúrbios e favelas como agentes de lutas, uma emanação do vir a ser pobre que reconhece na sua condição de vida o impacto que a segregação social, econômica e territorial lhe impõe. Sob este reconhecimento que seremos capazes de entender o que leva um jovem branco morador de um bairro pobre hegemonicamente negro a ser visto pelas forças do poder como um jovem também negro quando está no seu bairro.

Esta segregação invisibiliza sua voz, deforma seu bairro em nome da especulação imobiliária descolada do cotidiano, mata quaisquer infraestruturas como transporte, hospitais, escolas, etc. Ela implode os saberes e fazeres do povo, apaga sua paisagem, seu patrimônio construído, e sua história. O pobre não tem acesso à cidade como um todo, sem que seja questionado. Ainda que alguns tenham conseguido romper certas brechas e ganharam espaços de fala, o discurso hegemônico ainda é domesticado. Não se modifica a estrutura, mas se constrói um equipamento x ou uma apropriação cultural y e isso é vendido como uma solução. Criamos um pólo gastronômico em um bairro qualquer e deixamos o bairro vizinho entregue ao poder paralelo do tráfico, milícia e igreja unificados.

Não importa as forças que estão no poder, a base de constituição delas nasce da burguesia que pouco conhece os espaços segregados e invisíveis da cidade. Somos governados e geridos (seja pelo público ou pelo privado) por grupos e forças cuja origem está no mais elitizado dos espaços, nas universidades de ponta, nas escolas de ponta, onde muitos dos mais pobres nunca pisaram, pois precisam enfrentar uma luta hercúlea pela sobrevivência desde cedo. Quem é pobre não tem tempo de estacionar o carro no Leblon às dez da manhã de segunda-feira, não tem tempo de dar opinião em jornais de grande circulação ou de passar o dia bebendo uísque a beira da praia como forma de compor um grande sucesso nacional.

Por isso e outras mais, nossa luta não pode ser apenas uma disputa de identidades, pois a identidade carioca já está formada e dentro dela, o pobre já tem seu lugar definido e estereotipado. Nossa luta é um combate de classes, onde o suburbano e periférico veste seu Clóvis. Sob a fantasia está o lazer, a alegria, a dor, a paz e a violência. É com este ferramental de quem, nesta cidade, é realmente capaz de experimentar com tranquilidade as mais doidas contradições da sociedade, sem cair no maniqueísmo raso das intempéries, que teremos de buscar nossa alternativa para não sucumbir.

Turma do Indio 2017 – Guadalupe – imagem de Vincent Rosenblatt
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política, Sem categoria

Brasil um país cujo projeto de vida é não ter projeto nenhum

Desde que a humanidade tomou consciência de si e constituiu sociedade que ela tem de lidar com os mais difíceis desafios da natureza. Construindo ferramental prático, técnico, teórico e científico para resistir e construir seus espaços de garantia de bem viver.

Impressiona como um país como o Brasil sucumbiu a um projeto de existência terminal, tornando-se incapaz de enfrentar quaisquer questões mais severas. Em mais de 500 anos de história de ocupação colonizadora, e milhares de anos de ocupação do território pela humanidade, nossa história é marcada pelo constante achatamento da produção científica e técnica e do conhecimento como um todo. Ensino de qualidade sempre foi um projeto excludente no país, as pouquíssimas tentativas de formação de educação de base com qualidade e democrática foram rapidamente arrasadas, tão logo tentava-se instituir. Esta construção de nação dá o tom da nossa sociedade, um país com projetos rasos e efêmeros, que pouco valoriza a capacidade técnica e que entrega a sorte e ao destino todos os seus.

A destruição de Petrópolis, uma das cidades símbolo da história deste país, se torna mais um capítulo desta tragédia chamada Brasil. Não há surpresa no acontecido, a real é que há negligência histórica em lidar com a necessidade de se planejar. A tragédia é o desfecho de uma lógica que atravessa todo o sistema do campo da construção deste país. Embora seja um dos campos de trabalho e mercado que são estratégicos para o giro da economia, ele sempre opera de forma leviana. Preferimos construir estádios a hospitais, preferimos construir megamuseus a sistemas de saneamento, preferimos entregar o valor da terra por aumento de gabarito a respeitar limites ambientais frágeis. Esta é a cara das obras e da gestão pública neste lugar.

A política educacional, nossa principal chave de mudança está também destruída. Escolas funcionam como depósitos de jovens sem perspectiva. O sistema de universidades se tornou mera ferramenta de arrecadação financeira para grandes corporações e formação de mão de obra pouco reflexiva, isso em um país que é incapaz de absorver sequer um terço desta mão de obra formada. São décadas em que o projeto é achatar a produção de conhecimento, um projeto que se dá com mudanças gradativas.

Para piorar o caso, quaisquer forças progressistas atualmente organizadas se tornaram meros agentes de reação a tudo que surge, sem que se construa alternativas de saída. Tudo se resume a marketing e estratégia furada, o que também é um reflexo claro de um povo que pouco lê, que pouco consegue estudar e trabalhar por si mesmo a crítica, a reflexão e a produção de ideias. Não basta ao país apenas consumir, andar de avião, ter geladeira, ter televisão, precisamos de um país que saiba construir isso tudo, que saiba produzir tecnologias de defesa, que saiba monitorar tecnicamente os riscos de tragédia, entre outros.

Vivemos no desespero, em uma espécie de deixa acontecer e vamos ficando aqui. O Brasil na real não vive mais, apenas segue existindo enquanto respira. Este desespero que produz o crescimento das mais diversas formas de fé, de crença, de busca messiânica e equivocada de uma saída ou uma fuga.

Consta que, para sairmos deste abismo nacional, precisaríamos de um trabalho de longos anos. Precisaríamos recuperar os esforços em um projeto de educação concreto que garanta a nós formação suficiente para lidar com o revés do mundo. E um primeiro passo precisa ser tomado, a construção de um desejo de Nação, de nos entendermos como um povo onde um são todos, onde um cidadão não é problema só de si mesmo, mas um problema da cidade. Em resumo, precisaremos reconstruir o sentido coletivo da vida, o sentido político dela.

Temos de enfrentar fortemente a inércia que a tábula rasa dos 4 anos eleitorais coloca. Precisamos consolidar um olhar científico e técnico integrado, romper com o viés corporativo e particionado do indivíduo em si mesmo, do profissional em si mesmo, do saber como uma caixa cartesiana. Precisamos recuperar a costura e o sentido da função social do nosso trabalho e explodir os sistemas de captura financeira da vida. Não dá mais para aceitar cidades definidas e geridas com base em especulação financeira da terra, não dá mais para pensar hospitais geridos por quem vende nossa saúde a preço de banana, não dá mais para pensar a produção alimentar com base no lucro que posso ter com a fome do povo. Sem um olhar integral da vida, não sairemos desta lógica de ser um país cujo único projeto parece ser o de se tornar uma fazenda para o mundo onde poucas famílias fazem fortuna às custas da miséria de todos.

Petrópolis, Brumadinho, Morro do Bumba, Chuvas de 86, a história do nosso fracasso social segue cíclica.

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Moise

É mais que notório e inegável que vivemos um país racista. O assassinato a sangue frio do jovem congolês que buscou no Brasil um caminho de esperança e como tantos periféricos caiu no ciclo de morar em uma favela dos subúrbios e trabalhar em um bairro da centralidade retrata a imensa fragilidade do que temos construído até aqui.

Simplesmente, independente das inúmeras tentativas, nenhuma política pensada neste país até hoje reduziu ou mitigou a guerra aos pobres e a guerra aos povos negros. Nenhuma organizou economicamente e socialmente o fim deste ciclo histórico do mundo que faz transbordar até hoje a mesma violência que assolou a diáspora dos povos africanos somada a violência que os segue assolando em dias contemporâneos.

O sistema miliciano que matou o jovem Moïse Kabagambe a sangue frio e com doses colossais de sociopatia, é da mesma lógica de controle social que hoje ocupa seu país em guerras étnicas sem fim. Mesmo que haja um abismo entre os tipos de conflitos, há pouca diferença no uso tático das forças do capital entre este modelo que gere (pelo poder da violência) os territórios no Brasil, dos modelos organizacionais de clãs que ainda hoje se disputam nos territórios africanos.

Há em ambos a face da violência material, exposta pela pobreza, pela desigualdade de oportunidades, pela fome, somados a violências simbólicas com a impregnação no imaginário de que o corpo negro é o outro, o não familiar (ainda que ocupe massivamente o território).

O estado de guerra traçado permanece porque movimenta poder e dinheiro. Você consegue especular sobre terrenos, vender armas, vender a salvação eterna e divina aos que não tem muita esperança, criar lugares nas cidades mais valorizados (por haver lugares menos valorizados), consegue consolidar garimpos de extração de minérios em territórios controlados por um clã, entre muitos outros exemplos de como explorar estas relações de controle sócio-espacial.

Nkrumah fora a sua época inteligente ao notar que no seu território específico era necessário romper com elementos do conceito étnico para resistir a este outro que se utilizada destas disputas para manutenção da colônia. Para K. Nkrumah não era central uma linguagem ou cultura unificada, mas sim a construção de uma unidade em torno de uma construção comunitária da vida, a saída não partiria necessariamente pelos iguais cristalizados em seus laços étnicos e identidades imutáveis. A proposta passaria a ser uma nova composição, uma identidade que parte do desejo de libertação e emancipação dos povos africanos.

Moïse, congolês, fugido das guerras e da fome, negro, trabalhador, morador de Brás de Pina, foi assassinado ao tentar receber seu salário. Moïse foi morto em um país que usa de toda força e conhecimento dos povos negros na mesma medida em que os chacina diariamente em operações policiais sem fundamentação, afinal, o carro da PM passa diferente em Costa Barros e na Barra da Tijuca. Esta mesma PM onde corpos negros também são treinados pra matar e morrer a esmo em uma mesma Costa Barros onde corpos brancos também podem ser lidos como corpos negros diante do bico de um fuzil que passa apontado pra fora da Patamo.

Este é um crime que não pode ser silenciado, não pode ser abafado e nem resumido em uma bandeira ou símbolo de ato, é um crime que precisará ser devidamente punido. Assim também, é um crime que acende o alerta vermelho para esta cidade em que estamos! O Estado miliciano não se refere apenas as forças do poder armado que se organizam, junta-se a isso a cultura que se constrói em torno do punitivismo e justiçamento e sob o qual vamos nos habituando. Não vamos sair desta miséria de situação se não traçarmos urgentemente lutas que busquem verdadeiramente o desejo e o trabalho em torno da emancipação e libertação do povo mais pobre como um todo.

Congo, um país cujo PIB é de 10 bilhões de dólares, aproximadamente uns 5% da fortuna de Elon Musk perdeu no Brasil um dos seus filhos.

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cultura, rio de janeiro, Subúrbios

856 Um Adeus ao Poeta

Muitos filmes do Subúrbio em Transe são marcantes para mim, porém hoje falarei de um que como tantos é especial para a compreensão de diversos conceitos de vida, espaço, lugar, etc. 856 A CASA DO POETA.

Falo hoje como uma homenagem póstuma a partida do poeta J. Cardias, que cedeu e abriu sua casa ao Subúrbio em Transe para realização de tal obra. O eixo do filme está na remoção da casa do poeta para a passagem do BRT, durante as obras olímpicas. O poeta e sua casa eram um elo comum, ali onde o Taco se tornou a memória, reminiscência de um lugar que não volta mais.

J. Cardias foi uma dessas almas brilhantes e anônimas dos Subúrbios, alguém que fazia de sua vida e seu quintal a sua poesia, sua passagem por esta terra esteve imbricada neste lugar, um terreno e uma casa no bairro de Vila Kosmos. Casa esta que na disputa econômica da passagem do BRT, perdeu para o imenso shopping. O que J. Cardias nos permitiu, foi conhecer uma outra esfera das remoções dos mais pobres, este modelo de operação urbana que sempre volta com uma maquiagem de progresso. O poeta nos mostrou a remoção de um lar, de um lugar, o apagamento em vida de histórias, memórias e referências.

O poeta hoje partiu, assim como um dia foi extirpado de sua vida o seu lugar. Porém nos deixa a história de sua vida como exemplo, nos deixa suas poesias como presente e nos deixa sua resistência como legado. Esse é nosso país, onde aos mais pobres só resta luta pela sobrevivência. Todos que passamos pela pobreza, em um determinado grau enfrentamos as mais deveras frustrações que a desigualdade nos traz e tentamos seguir em frente. Dessas contradições de dor, frustração e necessidade de seguir vivendo que tiramos o suspiro de expressar, sem saber se nossas músicas serão ouvidas por mais pessoas além de nossos amigos, se nossa poesia será lida e entoada em todas as escolas de formação, sem se importar se nossa pintura vai ser exposta em um museu de grande notoriedade. Seguimos vivendo e produzindo, mesmo que quase anônimos porque esta produção está aí pra afastar o peso da desgraça que a desigualdade nos coloca.

Ao poeta, e porque não vizinho (afinal são bairros coligados) fica nossa admiração e aos familiares fica nossa condolência.

Aos amigos, simplesmente recomendo que assistam ao filme 856- A Casa do Poeta. Todos que já passaram por uma perda violenta de seu lar vão se reconhecer e aos que nunca passaram vão sentir.

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brasil, cultura, política

Reflexão sobre o processo de refração dos coletivos e identidades

É possível pensarmos que as formas de organização coletivas que se tornaram um modelo padrão nas últimas décadas esteja chegando em um momento de refração.

Já é notável que, de alguns anos para cá este modelo foi perdendo sua autonomia como forma de resistência e sendo capturado pelo sistema do capital, seja pela ferramenta de fomentos financeiros, seja pela atração do trabalho para dentro do modelo de mercado, os coletivos foram ganhando cada vez mais um tom de pequenas e micro-empresas (mesmo sem ser). Esta queda, que acabou por criar relações de competição entre grupos, e afastamento de muitos que buscavam nestes uma linha de fuga, ajudou a desmobilizar possíveis redes com capilaridade e capacidade de produzir outras formas de vivência, de distribuição de força de trabalho, de fazer política.

Além deste, a organização em coletivos que se encontra capturada pelo sistema de poder, acaba por viver em si mesma, presa na necessidade da própria sobrevivência, como quaisquer brasileiros que não tem capital ou herança. Mas a questão dada é: o que fazer diante disso?

Se não se consegue mais retirar os coletivos e similares do sistema, pois os mesmos precisam dos parcos recursos fornecidos pelo sistema, e ao mesmo tempo não podemos mais contestar este sistema pelo risco de ser isolado do acesso aos parcos recursos, fica a questão: Como retomar caminhos de mobilização para além deste?

Da mesma forma caminha a questão das lutas identitárias. Não é nas pautas que caminha o problema, mas na forma como muitos grupos acabaram caindo no controle deste mesmo capital, que por necessidade de recursos pra sobreviver, caíram no fluxo tradicional e não conseguem mais ter força para traçar um contrafluxo ou uma saída alternativa ao mesmo.

Cada vez mais entendo que devamos disputar a sociedade orgânica, aquela que não está organizada mas é capaz de construir sua sobrevivência apesar da escassez. Esta sociedade não precisa se entender por uma identidade necessariamente, mas muitas das vezes por uma enunciação coletiva. Num dado momento vizinhos que se odeiam podem construir um laço tático de saída de um confronto maior. Vizinhos que nunca se falam não precisam deixar um ao outro passar fome, essa é a questão.

Entendo que esta disputa também não se dará por círculos de coletivos organizados, mas por entendermos o modelo de funcionamento social dos mais pobres ao mesmo tempo em que estruturamos uma saída social e econômica de massa, um projeto amplo de emancipação nacional.

Hoje as alas mais progressistas seguem perdidas em si mesmas, transformou-se o Ser de Esquerda em uma identidade que representa tudo aquilo que é bom. Uma leitura essencialista que nem o Marx em sua fase filosófica (como um dos filósofos da suspeita) ou os existencialistas e percursores das teorias em torno das minorias e identidades pensariam. Possivelmente um Marx em 2022 estaria escrevendo altas críticas a este bloco e se dedicando a ler os principais pensadores sociais e econômicos dos mais diversos campos e lidas.

Precisamos antes de mais nada aceitar quem somos: um país complexo, com pouco estudo, cuja base política se funda a partir das forças militares e oligárquicas, de bases religiosas fortes e cujo progressismo e conservadorismo disputam intensamente uma classe média. Boa parte da nossa esquerda nunca leu Marx a fundo e boa parte da nossa direita também nunca leu seus autores de fundação e citação a fundo. O que temos em maior força parece sempre ser o senso comum. Enquanto isso os mais pobres lutam por sua sobrevivência e buscam o acalanto nas mais diversas formas de expressão e espaços que sobram (sejam igrejas, botequins, rodas de vizinho, etc).

Pensar este tipo de projeto no Brasil é um enfrentamento difícil e delicado, visto nossa política ser tradicionalmente um campo de projetos de curta distância e tábulas rasas sobre projetos passados. O Brasil, enquanto país das dimensões e complexidades que tem, não pode se dar ao luxo de viver rateado por meia dúzia de famílias e eminencias pardas do poder cuja linhagem pode ser traçada desde sua origem.

É por esta complexidade que precisamos pesar nosso caminho. Que projeto de Brasil queremos e precisamos? Não bastará dizer aos céus: Somos a Esquerda, somos o lado certo da história! Todos aqueles que no Rio de Janeiro por exemplo viram as remoções para as obras olímpicas e da copa das copas, todos que viram sua casa cair com a pichação SMH tocada pelo maior partido de esquerda do país a época, não considerarão este o lado bom da história. O teleférico parado do Alemão é uma obra dessa esquerda que está sempre no lado bom da história, e quem está fora da bolha sabe que boa parte da recessão do país vem daí.

O Brasil quer uma saída disso e nisso, é preciso entender que muitos dos que votaram em Bolsonaro em 2018 sabiam o que era o Bolsonaro e aceitaram o risco social. Foi uma escolha também do povo, este mesmo povo que só se ferra na história e que várias vezes é taxado por memes como culpado. Não foi culpa, foi desespero, desespero de inúmeras pessoas que aceitavam qualquer coisa por alguma mudança. A burrice desta esquerda que ama desesperadamente os espaços de poder é que, no auge de sua arrogância segue sendo a melhor das opções sem sequer sentar com este povo para traçar um caminho comum e popular, segue apregoada entre os seus na busca do caminho certo da história sem construir uma alternativa a si mesma que não seja o retorno ao passado.

Porém diante disso fica a pergunta de Nietsche: “Você viveria sua vida mais uma vez e outra, e assim eternamente?” ao qual, a maioria dos brasileiros, cansados e exaustos do peso da vida, do peso da pobreza e das dores nas articulações dificilmente responderiam um sim. Como seremos capazes de construir um país que nunca foi construído? com acesso a educação de base universal e de qualidade a todos os brasileiros, quando veremos um arranjo político capaz de produzir um planejamento viável de se executar para os próximos 10 ou 20 anos? sob quais ferramentas seremos capazes de reconstruir o Estado a ponto de dar os direitos básicos da existência da vida aos mais pobres?

Da mesma forma, quando vamos ser capazes de aprender com os mais pobres que as lutas da vida não cabem nas caixinhas pré-formuladas que tanto travaram os coletivos e muitos grupamentos que tentam lutar por um mundo melhor?

Cada vez mais creio que os novos caminhos passarão por isso: Um projeto nacional viável, somado a capacidade de compreender e estarmos junto nas redes mais orgânicas da sociedade. Só por aí seremos capazes de combater o niilismo político em que estamos e o cansaço na busca da construção de novos valores éticos que sejam capazes de repactuar nossa sociedade. Não é simples, e não há saída concreta seja pelo retorno ao passado onírico ou expectativa de um futuro que nunca vem. A saída estará na capacidade de trazermos resposta coerente para resolver este presente material em que estamos assentados.

criança de bicicleta em via expressa do BRT
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cultura, política

Eu tenho você não tem

Por que em meio a tanta miséria parte significativa do povo ainda enxerga com prazer a ostentação?  Copos da Stanley de centenas de reais, bezerros dourados na capital paulista, farras em apartamentos de luxo. Porém não é só nas estratificações mais ricas da sociedade que habita esta forma de pensar.

Se tem uma coisa que o capital soube explorar muito bem é o fetiche da mercadoria. Ele trabalha como desejo e o simbólico para transformar o tempo todo um produto em algo mais desejável. Com a artimanha da publicidade, qualquer coisa pode ser desfigurada do trabalho empreendido e remodelado para algo mais palatável ao nosso imaginário. Este é um bombardeamento que vemos todos os dias.

No Brasil, isso se torna altamente nocivo a medida em que nossa concepção de sucesso se baseia muitas das vezes em um excerto de bens de consumo como símbolo de ascensão social.  Vou citar aqui um fragmento do camarada Diego Felipe, professor de filosofia, pensador suburbano e midiativista sobre o tema quando ele relembra de uma antiga propaganda de TV:

“É a posse de “coisas exclusivas” que permite a diferenciação entre os “estamentos da sociedade”. É um valor neoliberal que nos anos 90 foi bem materializado em uma propaganda de um produto escolar, uma tesoura do Mickey anunciada pelo jargão “eu tenho você não tem”. Esta “mentalidade psicológica infantil” que é reproduzida pela ideologia neoliberal vale para tudo hoje. De marcas de carro que são vendidas a preços surreais até os últimos modelos de videogames como o Playstation 5. Para a elite brasileira mais vale pagar caro e ter o que os outros não têm, do que pagar preços justos e não poder afirmar status diferenciados”.

Independente do trabalho empreendido, há um grau de exclusividade que é engendrado em certas marcas, onde é notório que tanto a técnica quanto as tecnologias envolvidas não são os elementos principais que definem o custo. Quantas não são as diferentes lojas de roupas cujas camisas vem de uma mesma fábrica chinesa? Produtos similares com etiquetas distintas se diferem em preço via capacidade que uma marca x ou y tem de capilarizar na sociedade o seu sentido de ser. É por conta disso que um mesmo tipo de camisa de malha pode variar de 30 a 300 reais.

O Brasil tem se habituado a estar nesta construção onde a aceitação social está diretamente ligada a capacidade de consumir os mais diversos produtos, tendo como principal fundamento mostrar que o indivíduo está em outra estratificação econômica. É com base nisso que uma pessoa que melhora minimamente sua condição financeira aceita endividar-se para ter o carro do ano, a roupa da marca mais cara, a decoração de interiores da tendência, o celular que poucos conseguem ter. Cabe a própria pessoa, após a compra, criar a justificativa que valide a qualidade de forma a aceitar o preço. Para algumas, isso precisa ser devidamente registrado nas redes sociais, a vitrine onde todos parecem agir como pessoas públicas. Enquanto somos tomados por esta onda de mercado, vamos sentido o esvaziamento do sentido de ser no mundo batendo a nossa porta.

O ciclo do fetiche ostentação nos coloca numa prisão sem muros, onde cada fluxo de pensamento direciona a vida em função do que os outros tendem a pensar sobre nossas posses. O que passamos a construir é um laço constante de servidão e uma tentativa de responder a grande crise existencial a partir de redes de ressentimento. No fim todos sofrem, o consumista ressentido que não consegue encontrar um sentido profundo no que faz e nos objetos que compra e consome e aqueles que não conseguem alcançar uma linha de consumo e acabam por ser segregados pelo primeiro grupo.

O ser humano que antes recorria ao transcendente como uma recusa a vida real ainda era capaz de enxergar um tempo estendido, um mundo póstumo, uma obra permanente fazia significado. Hoje, no aprisionamento do fetiche, esta forma de apaziguar seus demônios tem um grau de imediatismo extremamente alto. Tão alto que a relação entre o prazer da ostentação e a frustração com o objeto precisa ser constantemente renovada.

A trilha aberta não traz respostas e faz o ser humano estar frente a frente com a fraqueza. Talvez por ser incapaz de sobreviver a existência do que é viver sem saber ao certo quanto tempo temos, para que estamos vivos aqui e sem termos nenhuma garantia de redes de proteção. Assim, não escapa do bombardeamento social, deste imenso campo de disputa onde cada indivíduo tem o “dever” de mostrar que venceu na vida. Nisto, o que construímos é um sistema social e cultural de pirâmide cuja prova do sucesso vem do comparativo entre aqueles que conseguem ter com o que não tem (seja o que for, ainda que não seja útil).

Este sistema de – consumo, fetiche e ressentimento- não resolve a crise e a existência humana, antes disso ele aprofunda. Existir envolve a nossa capacidade de afetar, de agir no mundo, de produzir e criar e de, mesmo que de maneira inconsciente, operarmos pela preservação do coletivo. Somos seres fracos quando prostrados na lógica do consumo cuja exclusividade alimenta nosso ego pela depreciação do nosso semelhante. Por sua vez, somos mais fortes conforme somos lançados no oceano do acaso criando ciclos de produção coletiva da vida e do próprio sentido dela.

Precisamos repensar um novo caminho, onde seguir em frente passe pela força de suportar as agruras e dores que o acaso abre. Mais que isso, precisamos recuperar uma ética que nos trouxe e nos manteve vivos até aqui. Apesar dos pesares, o ser humano traz em si o desejo de viver e seguir vivo, por mais caótico e casuístico que seja a trilha.

Podemos ter um exemplo destes caminhos na dolorosa estrada do Samba, que como bem lembrava Nelson Sargento: foi duramente perseguido. Em meio ao massacre que tenta constantemente apagar da história a potência de muitos povos, alegria de Jovelina está em formar uma corrente com elos muito resistentes, daqueles que levam bom tempo para arrebentar só para incomodar muita gente que quer terminar com nossa cultura.

É um crime pagar 200 reais em uma camiseta de malha da Osklen que não tem nada de muito diferente de uma camisa de 50 reais da Hering? Não, mas deveria ser no mínimo ofensivo acharmos isso normal em um país que parte gigante de sua população passa fome. Esse é nosso bezerro de ouro da escala do cotidiano e é isso que precisamos desnaturalizar. E se é pra comprar roupa, por que não passarmos na feirinha da Pavuna primeiro?

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